Caso fortuito, força maior ou ato criminoso? - Jornal Fato
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Caso fortuito, força maior ou ato criminoso?

A vida, devagarzinho, volta ao seu rumo, o rio já retomou o seu curso


Foto: Ronaldo Santos

A vida, devagarzinho, volta ao seu rumo, o rio já retomou o seu curso, mas tenho a impressão de que nunca mais seremos os mesmos, tendo sido ou não afetados diretamente pela enchente.

Eu, que tenho fobias várias, me afligi durante todo o período com as imagens que chegavam e me faltava o ar vendo a água subindo e as pessoas se arriscando para capturar o melhor ângulo. Sem os curiosos e imprudentes, não teríamos a vasta cobertura de uma das maiores tragédias de nossa cidade.

Um cinegrafista em cada esquina nos permitiu acompanhar em tempo real esse fenômeno que ainda não sei se foi mesmo caso fortuito ou força maior. Uma postagem do empresário Francisco Tinoco Rezende põe em dúvida se essa enchente que subiu e desceu na mesma velocidade teria sido mesmo fenômeno da natureza ou consequência de ato irresponsável de uma administradora de represa que nega, mas poderia ter aberto suas comportas ao perceber o rompimento iminente.

Liberar suas comportas sem testemunhas, e depois fechá-las, seria a forma de sair com a imagem e reputação a salvo, sem o risco de pagar indenizações e ter outras dores de cabeça. Melhor devastar cidades inteiras e depois se reunir com os prefeitos, negar tudo e fingir que nada aconteceu. Um ato criminoso, como definiu Tinoco. Espero sinceramente que ele esteja errado, mas parafraseando aquele que foi considerado o maior escritor brasileiro do Século XX, "eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa."

Percorrer as ruas de Cachoeiro é um flash back de dias e noites de horror. Os traços da devastação ainda permanecem, apesar do trabalho incansável da Prefeitura e de suas equipes, dos voluntários e dos lojistas e moradores afetados. O que mais me lembra a enchente é o cheiro ruim impregnado nos ambientes variados. Ares com cheiro de morte, desagradável, mesmo com toda a limpeza que foi feita.

Que faz arder o nariz, lacrimejar os olhos e doer a alma. Principalmente quando sabemos que muitas pessoas da mesma família foram atingidas. Em casa e no trabalho, com perda total de bens, possibilidades, memórias e histórias. Ouço relatos dos que conseguiram salvar os carros e voltaram para casa com água na cintura, para tentar salvar outros bens, mas não obtiveram sucesso. 

Dos que mudaram o carro para a garagem no segundo piso, mas mesmo assim a água foi até o teto, provocando perda total, dos que passaram a noite em claro no terraço da casa inundada ouvindo o furor das águas e de tudo que ela arrastava, do disparo do alarme de outro carro arrastado que durou a noite toda, que naquela altura tornava tudo ainda mais desesperador.

Inesquecível será também a solidariedade que nos moveu, e ainda nos move. Bom saber que o amor sobrevive. Em nossas imperfeições, nos unimos. Ainda há esperança. E que a fúria da natureza (ou consequência de um ato criminoso, nunca saberemos) nos torne cidadãos ambientalmente responsáveis. Esse não é papo de gente que não tem o que fazer, mas de quem respeita e estuda a natureza. Ações preservacionistas são urgentes. De planejamento urbano também. Ou fazemos isso ou estaremos à mercê dos casos fortuitos e de força maior.


Anete Lacerda Jornalista

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