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Papel passado

Mesmo após tanto tempo de poesia e de vida (próximo dos oitenta anos), Libério Neves é pouco conhecido no Brasil


- Foto: Divulgação

Uma antologia poética de Líbério Neves. Um goiano tornado mineiro pelos anos vividos em Belo Horizonte. Sua morada final. A Editora pertence à Universidade Federal de Minas Gerais (Editora UFMG), uma grata surpresa pela qualidade do papel, textos e formato do livro. Na Universidade mineira o autor formou-se no Curso de Direito. Mesmo após tanto tempo de poesia e de vida (próximo dos oitenta anos), Libério é pouco conhecido no Brasil, apesar de elogiado e admirado por Henriqueta Lisboa, Emilio Moura, Carlos Drummond de Andrade... Nesses momentos confusos na saúde, educação e na comunicação das pessoas, sua poesia, certamente, ajudará na interlocução uns com os outros e, ainda, mais ainda, a pensar...

Libério escreve em Doação: Dou minha matéria à terra./ Entanto antes apresento o corpo a ti, doutor, para a ciência dos teus dentros./... Vês no avesso em mim a pele, mas não seus arrepios de febre ou dor ou medo no amplo dos meus pelos./... Vês os nervos estendidos com suas cordas dormidas, e nunca sabes perceber as vibrações mais vivas dos meus íntimos tremores./... Então eu dou à terra pulmões e unhas e ossos e outras partes singulares./ Não posso dar os versos, não posso meus arrepios..." O poeta nos faz lembrar que ao ver um corpo devemos ir muito além do que vemos, devemos buscar o que não vemos, aquilo que sentimos, aquilo que a pele não deixa ver. O difícil é perceber, e sentir, as sensações que não desejamos, e justificamos na falta de tempo de um longo dia.

Em Autópsia: Do corpo ele diz - Você é isto: chamamos o sangue em vida, sabemos terra na morte./ Essa estrutura: tecemos músculos e nervos, restamos ossos. Não importa o desconforto do que sobramos quando fim da vida./ Você é couro, gasta-se em sola entre o ser e o sido... Do corpo e da alma - Você é isto: chamamos carne em vida, sabemos alma na morte./...Você respira: o que eleva o peito, e o que deprime o diafragma: esse respiro que chamamos carne, esse suspiro que sabemos alma... Da Alma - Você é isso: chamamos paina sobre a cabeça, luz dentro do crânio./ ...Você é Pedro, voa sobre o trigo plantado sob o vento... Nesses tempos de difícil comunicação humana, apesar da rapidez da transferência das imagens pelos celulares, a visão da imagem, segue-se nula, quando não se sabe ouvir.

Anos atrás, muito antes dos cuidadores profissionais dos corpos humanos, Libério antecipava um texto mais que atual, em Papel passado, um testamento das fragilidades e temores humanos: "Se, por acidente, moléstia ou velhice, algum dia eu vier a ver-me (resto) imóvel no lençol, a depender, por caridade ou pelo amor, do vosso gesto difícil, esse gesto de lavar meus panos de matéria e de limpar os meus resíduos deste mundo.../ isto será profundo para vós e doloroso para mim./ E certamente é certo que não terei palavras, nem gestos, para vos agradar./... quando (eu) assim restar, imovelmente mudo, contudo ainda vivo, estarei à todo instante, em mente, beijando as vossas mãos em mim santificadas... essencial talvez à filtração da alma."


Sergio Damião Médico e cronista

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