Desinteresse Prematuro - Jornal Fato
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Desinteresse Prematuro

Estava em São Paulo, encontrava-me na janela do apartamento junto ao meu neto Bernardo, era fim de tarde


Foto: UOL

Estava em São Paulo, encontrava-me na janela do apartamento junto ao meu neto Bernardo, era fim de tarde, e no crepúsculo, ele avistou uma estrela e disse: olha vovô! Vovô Sergio, uma estrela. Lembrei-me de Louise Gluck: "Esta noite, pela primeira vez em muitos anos, me apareceu de novo/ uma visão do esplendor da terra:/ no céu de fim de tarde/ a primeira estrela parecia/ ficar mais brilhante/ à medida que a terra escurecia/ até que afinal ela não pôde escurecer mais./ [...] Vênus, estrela do início da noite,/ a você eu dedico minha visão, já que nessa área em branco/ você projetou luz suficiente/ para tornar meu pensamento/ outra vez visível." e da mineira Ana Martins Marques: "[...] Gosto de tentar adivinhar/ o pensamento das pessoas/ gosto de pensar que o pensamento/ é um inquilino incendiário./ Uma coisa que nunca entendi é por que/ em geral se acredita que o poema/ não é lugar para pensar." Dias depois, em Vila Velha, próximo à areia da praia, João Vitor, meu neto mais novo, ainda sem esboçar as palavras, com o dedo indicador apontava o céu e me mostrava os passarinhos. Eu caminhava... Parecia que ele que me guiava. Deixei o tempo passar, simplesmente não agi, as palavras das poetisas foram o bastante. Após o episódio com os meus netos, achei que nada me interessaria, nada seria capaz de me provocar alguma reação. Em Cachoeiro, revi alguns textos. Sobre desinteresse prematuro, o autor sentia-se incomodado com o noticiário, não apenas político e econômico, mas, também, com os ditos assuntos modernos como casamentos de homossexuais, filho da Madonna e... Ele diz: Não parece incomum que os acontecimentos aborrecem. Tanto que a frase pertence a Paul Valery; em francês, a sonoridade da frase o encantou. O assunto parece influenciar a muitos, pois o romancista português (Antonio Alçada) usa a frase e se pergunta se ainda há interesses que nos restam. Lembra: "A vida da maior parte das pessoas foi gasta em coisas que não valiam a pena e que o sistema de aspirações que escolheram era de uma pobreza atroz." Alçada se atreve a reconhecer que não realizou o mais importante na sua vida, que, infelizmente, não consegue, ainda, saber bem o que é. O que busca é fugir à frase que caracteriza a velhice e o médico diz a respeito dos moribundos: "Esse já está desinteressado..."

 O texto derradeiro: A Cegueira e o Saber, de Afonso Romano de Sant'Anna. Começa com uma lenda: "Uma praga atingiu os mongóis. Os saudáveis fugiram. Entre os doentes havia um jovem chamado Tarvaa. O seu espírito deixou o corpo e chegou ao lugar dos mortos. O governante daquele lugar pergunta a Tarvaa: Por que deixaste o teu corpo enquanto ainda estava vivo? Eu não esperei que me chamasse. Simplesmente vim. Comovido, o governante disse: A tua hora ainda não chegou. Deves retornar. Mas pode levar daqui o que quiseres. Tarvaa olhou em volta e viu todas as alegrias e riquezas. Pediu: Dá-me a arte de contar histórias. E assim retornou ao seu corpo e constatou que os corvos já lhe haviam arrancado os olhos. Como não podia desobedecer ao governante, ele reentrou em seu corpo e viveu cego, porem conhecendo todos os contos e levando pela Mongólia alegria e saber para todas as pessoas." Conclui: Narrar é uma forma de sobreviver e afastar a morte. Assim foi em As mil e uma noites com as peripécias de Sherazade.

 

Sergio Damião Santana Moraes

 

 

 


Sergio Damião Médico e cronista

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