Literamúsicas cardiorromânticas - Jornal Fato
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Literamúsicas cardiorromânticas

Foi quando, Caetano, alguma coisa aconteceu no meu coração (embora chiasse, na FM dentro de mim, "Leão ferido")


- Foto: Reprodução web

Somente horas depois de chegar do mercadinho é que conferi a validade da margarina que comprei (no pendura) nesse estabelecimento: tinha vencido há quase um ano. Como, no entanto, parecia-me ainda apropriada para consumo, pensei em saboreá-la, com pão, no café da manhã seguinte.

Descartei a ideia, contudo, após uma revelação em sonho: vi, desenhado no verso da tampa da margarina, o rosto de uma longínqua ex-namorada, que, entre outros gestos benevolentes, dera calote até na própria tia.

Claro. Joguei o produto no lixo, não sem deixar de jogar sua data de vencimento no bicho. Acertei no milhar, Moringueira.

 

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O bairro BNH de Baixo, aqui em Cachoeiro, era minha passagem obrigatória para ir aos treinos de capoeira do mestre Falcão - à bença, padrinho -, no BNH de Cima, no anoitecer da década de noventa.

Só ontem, porém, conheci uma rua do BNH de Baixo onde, ao adentrá-la, dei de cara com uma igreja em ruínas. Foi quando, Caetano, alguma coisa aconteceu no meu coração (embora chiasse, na FM dentro de mim, "Leão ferido").

Bem, emoldurado pelo plúmbeo-róseo das nuvens de julho, o prédio, apesar de destroçado, situou minha real condição no mundo: mais um sobrevivente que apenas segue.

 

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Não é demérito, intelligentsia, confessar que atravesso este inverno também ao som da injustiçada banda Jota Quest - ou, resenhariam alguns cricríticos, "Jamiroquai pão de queijo".

Seus grooves e suas baladas ditam, ainda hoje, as batidas cardiorromânticas do adolescente que, da janela de Marapé, assistia ao namoro do mesmo casalzinho, na escada do sobrado à frente, nas tardes dominicais de 1999.

Não porque me havia indícios de voyeurismo, mas por uma ingênua esperança: olhá-los (e, na próxima faixa, escutar "O vento") fazia-me crer que o amor me viria, enfim, no outro domingo.

Estava enganado. Veio-me na segunda, em "flores a brotar do meu chão", entre as quais colhi você, minha pétala de bem-querer.

 

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O meu lugar tem nome de santo, espírito de porco, viciados fugidios, dono de quitinetes que aparenta ser parente de Chrystian & Ralf, falhas no sistema de drenagem e, além desses atrativos, garotos que se deslumbram com aviões que cortam o céu, aos sábados, de um modo meio banal, meio épico.

Ao cruzar o trecho aéreo acima do meu lugar, esses aviões costumam voar abaixo da linha da imaginação dos garotos.

 

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- Você deveria ser menos simpatia.

- Jamais. Gentileza é meu colete à prova de maldade.


Felipe Bezerra Jornalista Escritor, jornalista e membro da Academia Cachoeirense de Letras

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