Se um não quer, os dois esperam - Jornal Fato
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Se um não quer, os dois esperam

Lembro que entre a fase de criança e adolescência ouvia os adultos comentando sobre as mulheres mais velhas da família


Lembro que entre a fase de criança e adolescência ouvia os adultos comentando sobre as mulheres mais velhas da família. Os maridos chegavam bêbados e tiravam a roupa de suas esposas que, na maioria das vezes, estavam dormindo. E faziam sexo sem que elas tivessem a chance de dizer não. E mesmo quando ousavam dizer, não adiantava. Sofriam risco de violência ficar ainda pior, com chutes e safanões.

Olhando para trás eu sinto até um certo arrependimento pelas oportunidades em que reclamei do comportamento da minha avó, justamente por não entender o que era um relacionamento abusivo. Ela, que muitas vezes se desdobrava para entregar costuras e bala de coco, cuidar da casa e dos filhos, sofria com o alcoolismo e com as ofensas do meu avô. Hoje eu sei que não podia esperar que uma mulher que passou pelas coisas que ela passou fosse leve e bem-humorada. O que ela trazia de amargura era fruto de uma infância difícil e um casamento de altos e baixos, quando os baixos eram recheados de insultos gerados pelo excesso de álcool e de relação sexual sem consentimento.

Ainda hoje a violação praticada por cônjuge ou companheiro representam uma grande fatia da violência sexual sofrida pelas mulheres. Muitas sequer sabem que estão sendo vítimas de um crime e que podem denunciar. Outras mais são dependentes econômica ou emocionalmente de seus parceiros e sentem medo, e há ainda as que não denunciam por vergonha. Infelizmente o fantasma do "débito conjugal" ainda assombra, como se o laço do matrimônio obrigasse a cumprir a vontade irrestrita do outro. O grande passo é que a lei é muito clara quando diz que se a mulher for forçada a transar contra sua vontade um crime está sendo cometido, e o estupro cometido por cônjuge ou companheiro tem a pena agravada.

E aí você dá de cara, depois de anos de lutas, com a seguinte pérola: "A gente não pode negar fogo para o nosso marido, porque se negar aqui, ele vai procurar ali. Ele quer, a gente tem que estar ali para ele não procurar em outro lugar." Essa frase, que mais parece ter saído de alguma mulher bela, recatada, do lar e vivendo no século XIX, foi dita irresponsavelmente pela apresentadora de televisão Patrícia Abravanel. Propagando a ignorância, a moça, eleitora você sabe de quem, faz um desserviço ao nosso direito de dizer não.

Somos ainda frutos de uma sociedade que prega que homem para ser homem precisa "mostrar serviço". Mas um homem de verdade é aquele que tem sensibilidade para entender e respeitar o desejo ou a falta de desejo de sua parceira sem se sentir rejeitado ou fazer disso um cavalo de batalha. E o contrário também. Mulheres precisam entender que nem sempre seu companheiro tá afim. E tudo bem que seja assim.

Pregar em rede nacional que uma mulher deve ser submissa a fim de "prender" o seu homem é tão ofensivo que deveria ser crime. O marido dessa moça deve ter se sentido muito mal também. Imagina ele não saber se a mulher está ali com ele por desejo ou simplesmente para que ele não "pule a cerca"? Que mulher é essa que prega o sexo como algema, obrigação e penitência?

Obviamente que quem fica deitado no sofá esperando o aniversário de casamento para um coito sem graça e anual precisa de tratamento, e o mercado está cheio deles. Não dá para ficar adiando só porque é segunda de manhã ou porque é hora da novela. Ter preguiça do amor é um saco. Mas quando só um quer, também não dá. Se um não quer, os dois esperam um pouquinho.


Paula Garruth Colunista

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