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Naquela manhã

Meu afeto por crianças e parágrafos é o mesmo. Por sacolinhas de doces em dia de Cosme e Damião também


- Foto: Reprodução/web

Parágrafos suplicam por minha atenção feito crianças a disputarem doces em dia de Cosme e Damião, e não há nada de errado. Pelo contrário. Meu afeto por crianças e parágrafos é o mesmo. Por sacolinhas de doces em dia de Cosme e Damião também. Ainda que a doçura de tudo isso em nada afete as taxas de glicose e demais índices - e sandices - em minhas artérias.

Um dos parágrafos (ou erês?) que clamam por mim pede que eu segrede que, naquela manhã, meus dias passaram a ter sua razão de ser, justificando, enfim, o que Michel Melamed me respondeu, na III Bienal Rubem Braga, em 2010, tão logo lhe devolvi a embaraçosa pergunta que ele lançava aos entrevistados de seu extinto programa de TV, "Re[corte] Cultural".

 - Qual é o sentido da vida? - indaguei.

 - É se apaixonar. Porque você só encontra sentido de levantar da cama quando você tem essa força maior. Você se entrega por inteiro.

 Nessa ocasião, Melamed usava o que me parecia ser um cordão de miçangas brilhantes, tais quais o ouro dela. Nunca foi coincidência, sempre foi mamãe.

 

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Angustiado pelo malefício da dúvida, sem conseguir me recordar se a cueca que deixei pendurada no registro do chuveiro - depositário de nossas intimidades - estava de fato lavada, acabei a enxaguando novamente. Ou inicialmente? Sei lá. Sei que, em meio ao mijo no box, misturado à espuma de um sabonete vulgar, desimportâncias memoriais esvaíram-se de mim, ralo abaixo, no ritmo da roda vida, "que a brisa primeira levou".

 

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Dezembro de 2022. Era mais de meia-noite quando terminei de assistir à entrevista de Moacyr Luz no "Papo com Clê", podcast indispensável para quem é devoto da música brasileira. A certa altura da conversa, o compositor carioca sacou de sua memória uma parceria com o griô Martinho da Vila:

Me veio à mente um som
Não identifiquei, não
Peguei meu violão
E comecei a dedilhar...

...dedilhou, então, as cordas de seu instrumento e, sem saber, os fios de meus pensamentos, à luz de velas e de zuelas.

 

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Embora eu não seja Aldir, "necessito ir urgente ao dentista". Este outrora Colgate precisa decidir o destino de um dente inferior que anda mais amolecido que, perdão, ditadura de milico de pijama. Quanto aos versos de "Bijuterias", já escrevi que, diferentemente do que Blanc & Bosco profetizaram, tu (ainda que me reencontraste em setembro) vieste-me naquela manhã. 


Felipe Bezerra Jornalista Escritor, jornalista e membro da Academia Cachoeirense de Letras

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