Ecos da memória - Jornal Fato
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Ecos da memória

A crônica nunca se desfaz do passado, em especial da infância. Pelo contrário, sabe que os tempos contados são os vários instantes vividos, utiliza os ecos da memória


A crônica retrata momentos pessoais, coisas do cotidiano, na maioria das vezes efêmeras, consideradas passageiras no tempo e na vida, tais quais os insetos na beira de uma cachoeira. Retrata o esquecido no labirinto do tempo ou nos emaranhados dos neurônios. Algo escondido de todos e, muitas vezes, de nós mesmos, é vista por alguns como uma parte da literatura menos elaborada, conceituada e valorizada. E, para muitos, não pode, nem mesmo, ser considerada texto literário. Porém, sem esse gênero literário, se assim considerarmos, perderíamos a chance de conhecer as reminiscências e os detalhes de Cachoeiro de Itapemirim do nosso melhor cronista, Rubem Braga. Não saberíamos das paixões, do amor pelo futebol, em especial pelo Flamengo, de José Lins do Rego, e sua emocionante descrição da final da Copa do Mundo de 1950. Descreve em texto, "A Derrota", para o Uruguai: "Vi um povo de cabeça baixa, de lágrimas nos olhos, sem fala, abandonar o Estádio Municipal como se voltasse ao enterro de um pai muito amado. Vi um povo derrotado e, mais do que derrotado, sem esperança. Aquilo me doeu no coração. Toda a vibração dos minutos iniciais da partida reduzidos a uma pobre cinza de fogo apagado..."

Lembra momentos de nós mesmos, pessoais ou de relação com a natureza, instantes que nos tornamos atores do teatro da vida, ainda que em frações de segundos, instantes que não importam para o tempo contado, nem registrado na história oficial da cidade ou do mundo, ainda assim, a crônica marca a vida das pessoas. A crônica, pelo seu texto curto, usa e abusa das emoções, instantes relâmpagos, de significado de toda uma vida passada e presente. Embora não se preocupe com o que está por vir, influencia na vida futura. O cronista ao utilizar os instantes longínquos, altera levemente a formação do futuro. A crônica nunca se desfaz do passado, em especial da infância. Pelo contrário, sabe que os tempos contados são os vários instantes vividos, utiliza os ecos da memória. Quanto mais vivemos, menos entendemos seus efeitos. Quando nos aproximamos daquilo que imaginávamos, ocorre o vazio, e a idéia que poderia ter sido diferente.  Não sei por quê, mas uma época que ressoa forte é o dia de mais um ano de vida. Talvez por sabermos finitos, ou por tomarmos consciência do fato, ou quem sabe percebemos que além dos músculos, dos ossos e pele, existe a inexorável contagem do tempo, e este não podemos parar, a contagem é regressiva. A hereditariedade nos cobra sua parte. Em frente ao espelho percebemos a imagem distorcida pelo cansaço dos olhos. Com a contagem iniciada aparecem os ecos que nos arremessam ao tempo da mente vazia, tempos de criança, ricocheteiam em um ziguezague e voltam ao presente, vejo saídas: escolho aquela que nos prepara para o fim, ou para o início. Escolho a memória... O melhor que permanece. Como é bom, em dia de mais um ano de vida, rever as lembranças. Nas lembranças desaparece a memória recente e ficamos com a boa memória. Ecos que ressoam felizes e esperançosos como o som dos passarinhos, dos gritos do campo de futebol, da bola de gude, da bola de meia, do banho de mar, da pescaria do siri Açu, das conversas descompromissadas da criançada, conversas não vigiadas e das palavras não escolhidas. Foi isso que pensei ao acordar para mais um dia de vida.


Sergio Damião Médico e cronista

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