Romantização da miséria - Jornal Fato
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Romantização da miséria

A chamada de uma matéria pode romantizar o que é fruto do descaso e da miséria


A chamada de uma matéria pode romantizar o que é fruto do descaso e da miséria.

Recentemente li sobre dois rapazes e uma mãe e duas filhas, uma de seis e outra de oito anos, que vivem na rua. A manchete não chamava a atenção para o desemprego e a extrema pobreza que leva as pessoas a se exporem a todos os perigos, dormindo numa calçada embaixo de uma marquise próximo à Cinelândia. A mim apavora a possibilidade do estupro daquelas meninas e daquela mulher.

Destacaram o fato de que tanto os rapazes quanto a mãe e suas filhas mantêm a calçada limpinha. "Cuidado de mãe e filhas com calçada no centro do Rio chama a atenção: tudo limpinho para elas", dizia o título.

Na leitura, sabe-se que dormem sob uma lona, sobre papelão dobrado forrado com edredons que ganharam de doação. Destacam que as meninas se vestem de rosa, fazem as atividades escolares buscadas pela mãe na escola da comunidade onde tentam construir uma casa, ainda sem encanamento, portas, janelas ou qualquer outra infraestrutura que a torne habitável. Onde inclusive poderiam ser vítimas de bala perdida ou violência policial, vai saber que outros riscos correriam lá, além da fome.

Então a escolha é viver indignamente no que um dia pretendem que seja uma casa, ao lado de um valão infestado de ratos, ou na rua, onde tomam banho com a água que pegam num balde numa garagem de um edifício. Almoçam num abrigo da Prefeitura, onde também tomam o banho da tarde.

Se tentaram tirá-las da rua eu não sei. Ao que parece não foram alcançadas pelas políticas públicas que deveriam promover acolhimento, inclusão e aconchego.

Leio cada vez mais de pessoas que perderam o emprego e sem poder pagar as contas, tiveram a rua como serventia da vida. Mas quem se importa? Ao mesmo tempo em que ninguém pode obrigar a população de rua a ir para onde não queira, faltam opções dignas que permitam que a dignidade seja de fato resgatada.

 Como tantas mulheres, aquela mãe tenta dar às filhas a sensação de segurança, mesmo nas calçadas. Para se divertirem, aproveitam o que é de graça, a praia ou o Aterro do Flamengo, para onde vão aos finais de semana tomar banho ou rolar na grama, como relata a mãe.

Sabe o que mais? As meninas acham que tudo é brincadeira. Só mesmo uma mulher, mais que isso, uma mãe para colocar magia em dias tão difíceis.

Então a manchete deveria ser "Família é obrigada a morar na rua". Chega de romantização da miséria.


Anete Lacerda Jornalista

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