Coisas do tempo - Jornal Fato
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Coisas do tempo

O dia-a-dia de um paciente internado.


- Foto: Reprodução/Web

Carlos encontrava-se em quarto de hospital. Gradativamente voltava a consciência. Orientava-se através de informações recebidas de familiares e acompanhantes. Gostava da presença dos filhos, algo que nunca sentira. Pelas informações recebidas parecia uma volta ao mundo, voltara poucos dias atrás, encontrara-se em coma por quatro meses. Lembrava com clareza do passado: dos filhos, do casamento desfeito, do trabalho, do amor da sua vida... Dos momentos, dos meses que se encontrara em coma, as lembranças eram confusas, não poderia dizer se eram memórias ou fruto de sua imaginação. Mas, durante seu estado de inconsciência parecia sentir a presença de alguém, ou de algo, alguma coisa acima do seu corpo, uma moldura colorida e brilhante, como uma capa de proteção. Não conseguia explicar. Apenas sentira. Sentia-se bem, era o que importava. Foram oferecidas a ele. Ele recebia e agradecia em pensamento. As lembranças passadas, antes dos meses do coma, voltavam com toda intensidade. Estava na terceira idade, considerado idoso pelas leis do seu país. Lembrava-se dos instantes antes do coma. Dia e hora da chegada ao hospital. A manhã no pronto socorro, a presteza do atendimento médico e o diagnóstico da dor torácica intensa após a tomografia: Aneurisma Dissecante de Aorta. A chegada da maca, a subida rápida pela rampa de acesso ao Centro Cirúrgico, o alvoroço em sua chegada, o grito do anestesista e cirurgião, a diminuição dos batimentos cardíacos... E a partir dali, nada lembrava com clareza, apenas sentia. Voltava após quatro meses.

No leito hospitalar, recebia estímulos da fisioterapia e fonoaudióloga, recuperava músculos, palavras e deglutição. Aceitava com humildade as ajudas e cuidados; agradecia a cada cuidado oferecido e não lamentava as dores, infortúnios e as dificuldades enfrentadas nos movimentos. O que incomodava era a televisão, as notícias de sua cidade, país e o mundo eram assustadoras. A pandemia do novo vírus, uma doença nova com alta contaminação e letalidade. Assustava o número crescente de doentes e de mortes. Pior, sem medicação curativa. Aguardava-se a vacina, sem previsão para sua chegada. Temia pelos filhos. Em suas noites, em meio às angústias, em meio ao medo do novo vírus, aparecia uma imagem alentadora, aparecia o rosto da Márcia, o amor de sua vida. Aparecia uma mulher de pele branca, branca como a neve, olhos claros, corpo insinuante, jovem... Era a mesma imagem da mulher de meses antes de sua internação hospitalar e do momento de sua chegada ao Centro Cirúrgico. Sentia saudades que se transformavam em um desejo imenso de revê-la. Mas, estaria vulnerável perante a mulher dos seus sonhos. Com o passar dos dias, com as melhoras clínicas, crescia o desejo de rever Márcia. Estava decidido, após a alta, ao sair do hospital, venceria o medo e a procuraria. Porém, no dia seguinte. No momento da saída do hospital, a indecisão, a insegurança: temia que ela não o quisesse. Temia por novos sofrimentos, temia a rejeição e indiferença. Decidiu, deixaria o tempo agir. O tempo seria o senhor da sua história.

 


Sergio Damião Médico e cronista

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