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Bem-te-vi

O filhote de Bem-te-vi se assemelha as crianças que habitam as ruas e morros das nossas cidades. Crescem sem perspectivas.


- Foto Reprodução Web

Tempos atrás me deparei com um ninho próximo à Banca do Jorge. A banca fica entre o Mercado Municipal e a antiga Padaria Brasil, na Praça São João. O ninho se acomodava no alto de um poste de iluminação pública. O calor da lâmpada aquecia seus habitantes nas noites frias de fim de outono e começo de inverno cachoeirense. Era pequeno, forma oval, vários gravetos se sobressaíam. Não era bonito, mas parecia aconchegante como toda moradia construída com esforço e perseverança. Uma moradia permanente. Os moradores vão se alternando, seus proprietários (os genitores) expulsam os aprendizes tão logo percebem a capacidade de sobrevivência. Foi em uma dessas expulsões que o conheci. Apesar da passagem frequente pelo local nunca reparara até então. Em um desses finais de semana, ao me aproximar da banca de revistas, reparei no esforço do Jorge, o guardador do ninho, em alinhar um pequeno pássaro colorido (cabeça preta e peito amarelo), que dizia tratar-se do Bem-te-vi, de volta a árvore, esperava com essa pequena ajuda que alcançasse o ninho, no poste ao lado. Após algumas tentativas de recolocar o nosso filhote de Pitangus Sulphuratus, desistiu. Concluiu que, os genitores não o expulsaram, não se tratava de um "ninhego", e sim, buscavam levá-lo ao amadurecimento e desenvolvimento através da liberdade. Aprenderia a voar, e assim, ganharia o mundo. Mas ele, tão logo deixava o ninho, desabava no asfalto. Junto aos carros da avenida. Pelos riscos do local, as chances de sobrevivência eram pequenas. Nascera em local inadequado. Assim como muitas crianças da nossa cidade. O filhote de Bem-te-vi se assemelha as crianças que habitam as ruas e morros das nossas cidades. Crescem sem perspectivas. Cuidamos mal das crianças e das nossas aves. Um futuro ameaçado. Naquele momento, enquanto encontrava-se ainda sob a guarda dos seus genitores e junto ao conforto e segurança do ninho, mostrava-se forte, colorido, uma beleza de pássaro. Caso estivesse em um habitat ideal e adequado, se estivesse no campo, logo cantaria. Pelas condições oferecidas e apresentadas, pelo local onde se encontrava, corremos o risco de nunca ouvir seu piar. Um canto a menos em nossa cidade. Um empobrecimento em nossa onomatopéia.

Mas Jorge não desistia. Lembrou de outros passarinhos, de gerações anteriores de Bem-te-vis que utilizaram esse mesmo ninho. Lembrou do canto forte, do modo peculiar no assobiar, na chegada do casal de amantes e futuros genitores. Ele acompanhava a natureza, as coisas do ser humano e as coisas da cidade se misturando. As gerações se adaptam. As hormeses acontecem. São maneiras diferentes de viverem e vivermos. Bom seria se a ave de cabeça preta e peito amarelo continuasse exibindo seu canto em toda região brasileira. Que o Bem-te-vi continuasse a encantar São Pedro, padroeiro de Cachoeiro de Itapemirim, em mês de junho e em todos os meses do ano. Quando ele eleva o voo e, ao longe, ouvimos seu sinal, ficamos com a certeza que São Pedro esquece as chuvas e que o sol estar por vir. Lembramos o calor e aconchego de um ninho. E, é o que buscamos quando adormecemos.


Sergio Damião Médico e cronista

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