Coisas Miúdas do Viver Cotidiano - Jornal Fato
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Coisas Miúdas do Viver Cotidiano


Higner Mansur

Andava à procura de livro de Ortega Y Gasset, onde o filósofo espanhol escrevera a frase verdadeira e tão repetida: "Eu sou eu e minhas circunstâncias"?. Achei, mas não falo agora. Ã? que, abaixo do achado, achei algo tão importante quanto a imortal frase: a celebração da simplicidade, onde o simples é maior que o complicado, as pequenas coisas da vida não são pequenas; são maiores que as celebrações com as quais convivemos e achamos muito.

Ortega Y Gasset: "Porque esse é o fato: quando chegamos aos bairros baixos do pessimismo e não achamos no Universo nada que nos pareça uma afirmação capaz de nos salvar, volvem-se os olhos para as coisas miúdas do viver cotidiano... Vemos, então, como não são as grandes coisas, os grandes prazeres, nem as grandes ambições, o que nos retém à flor da vida, e sim esses minutos de bem-estar junto a uma lareira, no inverno; esta grata sensação de um cálice de licor que bebemos; aquela maneira de pisar o solo, quando caminha, a moça gentil que não amamos, nem conhecemos; tal sutileza que o amigo engenhoso nos diz com sua boa voz costumeira. Parece-me bastante humano o sucesso de quem, desesperado, foi enforcar-se numa árvore, e quando deitava a corda ao pescoço, sentiu o aroma de uma rosa que havia ao pé do tronco e não se enforcou"?.

A filosofia atrai, mas não é ela, ao menos sozinha, que move moinhos. A filosofia preenche, e também não o faz só. Haverá de vir, junto, fruto do ser, momento sublime de vida, de aproximação, de intuição, aquilo que Guilherme Secchin conta, ao falar do caminho que lhe abrira Sâmia Creimer, no seu tempo de criança, no sempre presente de alguém tocado pela arte e pela intuição do bom futuro.

Diz Guilherme Secchin, pintor cachoeirense: "quando comecei a pintar... pintava às escondidas na garagem da casa, usando todo e qualquer tipo de superfície que pudesse servir de suporte. Assim, várias capas duras de livros didáticos, lajotas e sobras de azulejo viraram pinturas que eram escondidas naquele lugar. Um dia, D. Sâmia Creimer viu algumas dessas pinturas e propôs um bom negócio: ela ficou com algumas pinturas e em troca delas me deu tintas e telas para que eu continuasse a criar: além de me emprestar vários livros de arte que certamente abriram a minha cabeça! Credito a ela grande responsabilidade pela minha formação como artista. Comecei a vender minhas obras com apenas 13, 14 anos de idade".

Não duvido que Ortega Y Gasset sozinho comova, comove; mas tenho de dizer: quando à filosofia se juntam gestos simples e fortes como os de Sâmia Creimer, não sobra espaço para quem não é generoso, para quem que não adota a simplicidade e o olhar interessado pelo futuro da criança, da terra, do mundo. E tanto mais a emoção me aumenta quando, ontem, lidos Gasset e Secchin, vem me dizer Sâmia que entregará a Guilherme a pequena escultura de mãe e filho, feito por ele, criança, que ela guarda até hoje, mas que não pode ficar com ela, pois é dele, exemplar único e precioso de tempo da delicadeza, da doação, da intuição, coisas não tão miúdas.

Eu Sou Eu e Minhas Circunstâncias

Ortega Y Gasset

"Minha circunstância é parte constitutiva de mim mesmo. Tenho que amar minha circunstância como a mim mesmo, pra compreendê-la... O homem rende o máximo de sua capacidade quando adquire plena consciência de suas circunstâncias. Por elas se comunica com o universo.

A circunstância! Circum-stantia! As coisas mudas em nosso próximo derredor! Muito perto, muito perto de nós levantam suas tácitas fisionomias com um gesto de humildade e anelo, como necessitadas de que aceitemos sua oferenda e, ao mesmo tempo, envergonhadas pela simplicidade aparente do seu donativo. E andamos cegos entre elas, o olhar fixo em remotas empresas, projetados para a conquista de longínquas cidades esquemáticas...

Eu sou eu e minhas circunstâncias, e se não a salvo, não me salvo eu. Benefac locoilli quo natus es (bendize o lugar onde nasceste), lemos na Bíblia. E na escola platônica se nos dá como empresa de toda a cultura, esta: "salvar as aparências"?, os fenômenos. Quer dizer, buscar o sentido do que nos rodeia.

Preparados os olhos no mapa-múndi, convém que os voltemos ao Guadarrama (em Cachoeiro, ao Itabira, ao Frade e a Freira). Talvez nada profundo encontremos. Mas estejamos seguros de que o defeito e a esterilidade provêm de nosso olhar. Há também um logos do Mançanares (em Cachoeiro, do Rio Itapemirim): esta humílima ribeira, esta líquida ironia que lambe as pedras de nossa urbe, leva, entre suas poucas gotas de água, alguma gota de espiritualidade"?.

(Higner Mansur - Estão aí, inteiras, as circunstâncias que nos contêm. Buscamos o mundo e nos esquecemos que o Itabira está sendo loteado e que o Rio Itapemirim está sendo invadido, com gente autorizada a construir em cima dele. Cidade estreita e montanhosa como a nossa, a prefeitura se lixa para os problemas de prédios de grande porte, construídos em morros e em ruas estreitas, sem estudo de nada, nem mesmo de vizinhança, aliás, este, adormecido há mais de três anos nos cofres e meandros da municipalidade. Nossas circunstâncias definem nossos horizontes (ou é o inverso?); temos que cuidar de nossa cidade e não "a conquista de longínquas cidades esquemáticas"?. Não perca de vista, leitor, que essas circunstâncias vão além da geografia, da demografia, do urbanismo. Texto de Ortega retirado de "Meditações do Quixote"?, Ed. Livro Líbero Americano (págs. 38/segs.). O texto também está em "Ortega Y Gasset, A Aventura da Razão"? (Ed. Moderna, 144 pág. 97/8), de Gilberto de Mello Kujawski, aliás, tradutor do "Meditações"?. Ambos esgotados.

Das Circunstâncias

Higner Mansur

Vi, no facebook, professora municipal dizendo que a prefeitura de Cachoeiro gastara R$ 1.300.000,00 em 1.100 conjuntos de livros, CDs e DVDs para ensinar crianças de escolas municipais a aprender inglês. Não acreditei, dado o vulto da aquisição, e fui à página da prefeitura, na internet (portal da transparência). Ã? pior: gastaram, em "1.100 unidades do livro "BARSA HÃ?LIO (sic) HOOBS"? e 250 unidades do livro "CURSO DE INGLÃ?S BARSA VICTOR"?, conforme solicitação da Secretaria Municipal de Educação, R$ 1.715.000,00"?. E mais, gastaram na "aquisição de 15.000 livros "CRACK: O CAMINHO DA VIDA NÃ?O PASSA POR ESTA PEDRA"?; 15.000 livros "SE LIGUE NA INTERNET"? e 15.000 livros "VIOLÃ?NCIA NAS ESCOLAS - BULYNG"?, conforme solicitação da Secretaria Municipal de Educação, R$ 445.500,00.

Não sou dos que vêem "mal feitos"? em todo lugar; para mim não basta falar, há que comprovar, daí não duvido que o preço seja esse mesmo, até prova em contrário, caríssimo. Acho que se fosse comprar para o setor privado ninguém, nem eles, comprariam.

Em cidade como a nossa, de interior, com muitas necessidades, como os jornais locais proclamam todos os dias, as circunstâncias "" as circunstâncias de Ortega Y Gasset "" de forma alguma indicam que se deve gastar, em um só mês, mais de R$ 2.160.000,00 em papéis coloridos que vêm de fora, em vez de gastá-los noutras atividades de educação mais producentes, mais realistas e mais dentro da cidade.

Com esse vultoso valor melhora-se muito a merenda escolar, compram-se milhões de livros de educação direta para a população escolar, inclusive clássicos e mais um monte de coisa que qualquer um sabe o que é e eu não preciso ficar gastando lábia por aqui. Mas e enfim, embora discorde veementemente, havemos de respeitar a vontade popular que, legitimamente, elegeu o atual Poder Executivo para fazer inclusive isso. Assim a democracia, assim as circunstâncias que nós mesmos criamos, a não ser que não sejam.

A Igreja dos Crentes e a Leitura

Higner Mansur

O pessoal anda massacrando os crentes, basta ver todos os canais de mídia. O massacre é direto e não se têm respeitado peculiaridades. Marisa Lajolo, das grandes e mais respeitadas profissionais do ensino e da pesquisa sobre a leitura no Brasil, deu depoimento no livro "Em Questão "" Políticas e práticas de leitura no Brasil"? (Observatório da Educação e Imprensa Oficial de São Paulo, 86 págs., formato grande, R$ 12,00):

"Ã? muito difícil instituir políticas públicas sem nenhum espaço institucional. Pelas histórias de leitura que estou levantando, vejo que a igreja é um espaço fundamental. Mas acho que precisamos identificar outras instituições significativas para a população. Em alguns programas evangélicos exibidos bem tarde da noite na televisão, é interessante observar a performance verbal das pessoas. Ã? muito boa. Trata-se de uma performance sofisticada que, dificilmente ocorreria há 10 anos. Acho que a leitura bíblica está melhorando a performance verbal das pessoas. Valeria a pena estudar isso"?.

Do meu modesto canto, acho que isso acontece há bem mais de 10 anos. Quando eu era presbiteriano, e já se passaram 45 anos, a leitura da Bíblia, e não só dela, era matéria corriqueira na Igreja, ao menos quatro vezes por semana. Não só leitura, mas discussão do que se lia na igreja protestante, ao menos a que conheci. Não tinha dono da verdade; a interpretação não era una. A razão tinha valor, sem perder a fé, coisas ambas que acho, não as perdi.

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