Fartura na pobreza? - Jornal Fato
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Fartura na pobreza?


O senhorzinho negro e franzino, mas muito bem disposto, que embarca no meio do caminho chama a minha atenção.

 

Calça impecavelmente branca como há muito tempo não via, especialmente num despretensioso dia de semana.

 

O agasalho com capuz combina perfeitamente com os dias gelados que insistem em ficar um pouco mais.

 

Aquele deve ser seu caminho da roça há muitos anos. Prova disso é o carinho com que é recebido por alguns passageiros e pelo cobrador. Simpático e falante, senta-se ao meu lado.

 

A memória afetiva dá a ele um lugar especial. Poderia ser meu bisavô, de quem só conheço as histórias, mas que era tão negro, e  até onde sei, tão desenvolto quanto ele.

 

O frio é o tema da conversa, já abordado por outros passageiros. Mas nenhum deles atraiu o meu olhar. Dou corda à prosa e ele afirma que só viu dias tão frios na infância e juventude.

 

E falou algo que merece reflexão. "Menina, hoje todo mundo é rico. Pobreza era no meu tempo. Ninguém tinha blusa de frio. A gente entrava no saco de estopa se quisesse dormir. E ninguém morria".

 

A segunda parte foi a mais interessante. "Pobreza, mas com fartura". Como assim, me pergunto. E ele, como que a ouvir minha dúvida, responde. "A gente tinha tudo na roça. Não tinha luxo, vestia roupa remendada, calça com remendo grande no joelho, camisa também com remendos, andava muito simples, mas nem ligava. A gente era feliz".

 

Revela que fará 89 anos. "Em 10 meses", como faz questão de destacar. E prossegue: "Hoje as pessoas querem muito, se a roupa estraga um pouquinho jogam fora. É porque sobra. São realmente ricas, mas vivem reclamando".

 

Teria conversado com ele horas a fio, e sei que seria prazeroso. Personagens como ele me fascinam. Têm muita história para contar. E eu sempre estou disposta a ouvir.

 

E o que pode parecer contraditório, pobreza com fartura, pode revelar que precisamos aderir à prática do desapego. Desapegar do que nos causa sofrimento, porque nos empurra ao consumismo desenfreado, à busca de coisas que não nos pertencem, que não fazem parte da nossa história, mas são perseguidas assim mesmo, porque todo mundo tem.

 

Saudosista ou não, meu breve companheiro de viagem merece ser ouvido. Pelo menos por mim, que ando em busca de fartura em tempos tão difíceis. Fartura de sorrisos, de afeto, de sonhos.

 

E que haja adubação diária da essência de cada um de nós, para que vejamos fartura na pobreza de valores e princípios que assolam os dias atuais, em que é melhor ser espertalhão do que ser ético e honesto.

 

Quero a fartura que faça bem a todos, que agregue e permita a permanência de coisas e pessoas que edifiquem. Pessoas que somem na minha trajetória.

 

E o desejo, por hora, é um só. Que eu chegue aos 89 anos tão bem disposta  como o senhorzinho falante e aparentemente feliz. Que felicidade faz bem e todo mundo gosta.

 


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