Hitchcock virou motoboy em Cachoeiro - Jornal Fato
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Hitchcock virou motoboy em Cachoeiro

Vi na portaria, outra noite, uma versão apócrifa de Alfred Hitchcock, cumprindo expediente como motoboy


- Foto: Reprodução/web

Sem disposição para qualquer tentativa de comédia ou de lirismo (e a saudade que sinto do outono nada tem a ver com minha atual indiferença), quero me dedicar apenas ao exercício do mau humor. 

Sabe aquele troço que filma as pessoas, num giro de 360 graus, enquanto elas se arriscam em bailados que remetem aos primórdios da civilização? Tenho coragem não. Jamais negociarei minha dignidade.  

Também percebi, muito a contragosto, que as redes sociais vêm trabalhando fortemente na consolidação de um - como direi? - novo nicho musical de nosso país: as músicas mais tocadas nos stories.  

Aniversário? "Te desejo vida", com Fábio de Melo Rego. Reencontro? "A amizade é tudo", com Jeito Moleque Safado. Acordou para mais um dia mesquinho? "Gratidão", com Rafa Gomes e padre Manzotti (o próprio). 

Uma tragédia em diferentes camadas. Ensejos escravizados por algoritmos, esses algozes da singularidade. Vai tomar na Venezuela, Zuckerberg.   

Fato é que sempre me aventurei em batalhas quixotoscas contra todo modismo que venha a idiotizar a espécie humana - como se já não fôssemos, por natureza e excelência, vocacionados à autoimbecilização... 

Nunca segui manadas, manatos. Recordo-me de que, pré-aborrecente, saí à francesa de uma festinha, lá em Marapé, só porque tocavam, à exaustão, "segura o tchan" e "vai descendo na boquinha da garrafa".  

Mesmo pirralho, eu buscava me desvencilhar da tolice coletiva. O que justifica, ainda hoje, meu apego às gírias suburbanas das antigas, em oposição, por exemplo, ao indefectível "é sobre isso". Ai, ai...  

Agora, deixa eu te contar. Vi na portaria, outra noite, uma versão apócrifa de Alfred Hitchcock, cumprindo expediente como motoboy.  

 

DESCALÇOS

Quando verbalizado por uma boca feminina, o sotaque carioca me parece o arrastar de um par de chinelos Kenner de uma garota a passear, tão despretensiosa quanto marrenta, em alguma rua do Irajá ou de Ipanema.  

Embora soe como ode, trata-se apenas de observação. Minha literatura nada (e tudo) mais é do que uma reconstituição dos passos que me trouxeram à capixaba cujos pés, descalços, completam-me de mundo.

 

E POR FALAR EM SAUDADE...

O Brasil no qual faço fé repercute do atabaque do ogã, do berimbau do angoleiro, do canto da benzedeira, da gargalhada da pomba-gira, do brado do caboclo, da "zabumba de paixão", da jukebox da birosca, do agogô do Império Serrano, do teclado do forró risca-faca...

 

Nesse Brasil, quero dançar "Onde anda você" contigo, de rosto colado, numa noite que, de vazia, só teria - e terá - a lembrança (e lambança) do horror do horror pretérito e preterido.     


Felipe Bezerra Jornalista Escritor, jornalista e membro da Academia Cachoeirense de Letras

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