A poderosa é você
Sei não, mas, parafraseando Shakespeare, há mais mistérios entre o bar e o mar do que a vã filosofia dos pagodeiros possa imaginar
Já passavam das seis da tarde quando, em-mim-mesmando pelaí, vi um bebum sair de um desses botequins vagabundos, aos quais Blanc, Moa e eu não resistimos. "Se tudo der certo, além de merda, vai dar crônica", falei com meus fios de conta. Não deu outra. O desdito cujo andou alguns metros, avistou uma distinta balzaquiana e, tentando se equilibrar na corda bamba entre a garbosidade e a inconveniência, decidiu abordá-la.
- Oi. É você, Fulana?
- Sim, sou eu - confirmou, a contragosto.
- Felicidades...
O pau-d'água seguiu seu rumo(?) e, para uma plateia compulsoriamente formada pelos peões da obra em execução no pedaço, cantarolou:
- "Podes crer
Das aventuras que fiz
Não há prazer como o seu
A poderosa é você..."
Teria ele, sem ela, nadado e morrido na beira da praia? Sei não, mas, parafraseando Shakespeare, há mais mistérios entre o bar e o mar do que a vã filosofia dos pagodeiros possa imaginar.
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Vai à janela do quarto e, ao contemplar o céu ensolarado - e alegre - de mais uma manhã de inverno, prevê que sua sexta-feira há de ser, sim, permeada por esse paradoxo climático-poético. A nostalgia que lhe invade não é covarde, e sim aprazível: tem o exato sabor do pretérito (docemente temperado por Dandalunda) que tão logo possível há de lhe ser presente para sempre.
Universo favoravelmente conspirador - (quase) tudo parece estar em seu devido lugar. Passarinhos cantam lá fora, enquanto, do lado de dentro, aranhinhas silenciam-se em suas tramas, nos cantos do teto.
Já na rua, a caminho do serviço, encontra um senhorzinho, que lhe simula um assalto, fazendo arminha com a mão - nada a ver (e 'haver') com antecedentes bozocriminais -, e lhe desfere um sorriso.
Ah, seu moço, como não esperançar um futuro melhor, não é verdade?
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O garoto pediu licença-garrafão à molecada, calçou sua sandalinha Tyo-Tyo (cover oficial das Havaianas), foi à janela da fachada à frente, chamou a dona da casa e pediu água. Solícita, trouxe-lhe copo e jarra, que estava destampada. Ao beber, o menino sentiu "gosto de geladeira", experimentando ali, pela primeira vez, toda a imprevisibilidade das amarguras da vida.
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Estas linhas se encerram na intenção da alma de Dona Creuza, do bar da beira da pista, na Jones dos Santos Neves (entre o Caiçara e o Monte Cristo), em Cachoeiro. Mais um dos homens comuns que já debruçaram suas dores naquele balcão, o cronista deseja que Dona Creuza tenha se tornado um verso de Gilberto Gil: mais uma estrela a "brilhar quando a lágrima cair".