Tal como aquela canção radiocafônica - Jornal Fato
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Tal como aquela canção radiocafônica

Eu e o jornalista Raul Marques trabalhamos juntos, durante uma primavera, na Cachoeiro FM


- Foto Reprodução Web

Senti-me inspirado a dedicar algumas linhas de fé à memória do jornalista Raul Marques. Não é infâmia atestar que seu sobrenome foi um trocadilho e tanto: baita colega - e mestre - de profissão, meu conterrâneo carioca marcou presença por estas bandas capixabas.

Mas, antes de chegar aqui, já havia sido desde sobrevivente de tragédia de avião (o único, segundo a lenda) a roteirista de cinessaliências. Um currículo à altura de quem, combinando colete à la Jorge Tadeu com gravata de Penélope Charmosa, entrevistava até a mais sisuda autoridade, sem abrir mão da inteligência e ironia que o singularizavam.

Trabalhamos juntos, durante uma primavera, na Cachoeiro FM. Nesse período, graças ao meu zelo pela escrita, conquistei dele, devoto da polidez gramatical, admiração e respeito. De mim, Raul ganhou afeto e, nos últimos tempos, uma saudade que, tal como aquela canção radiocafônica, invade-me à manhã.

 

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Só me tornei um "lavrador que planta brilho" porque, numa noite fria e vazia, amarrei meu arado à estrela de Gilberto Gil, o "lavrador louco dos astros".

 

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Enfim vejo, na TV, um tipo que me representa - o grifo é da mesma juventude que, dia sim, dia sim, exaure-me com seus vícios de lugar-comum de fala, a exemplo do "é sobre isso". O dito-cujo, personagem de uma novela nordestina, trata-se (eis outro termo em voga entre a moçada) de puro suco de Felipe Bezerra: bobalhão e apaixonado pelos pés de sua musa.

"Cadê o amor próprio, hômi?" A altivez que me define parte, também, do mais carinhoso autoesculacho.

 

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Um dos fregueses do Bar do Miguel ostenta, a contragosto, o título de cover desoficial de Tatau, ex-vocalista do Ara Ketu. Tarde dessas, porém, desviou-se de sua função: decidiu parafrasear Ivan Lins e Vitor Martins. "A fome tem feito coisas/ Que até o capeta duvida", cometeu.

 

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- Toda florida, hein? Cuidado com o beija-flor.

- Meu pólen não é pra qualquer bico, não.

 

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Descendo a ladeira - não ao estilo Moraes Moreira, nem ao modo Zé Pelintra -, elevei meus olhos ao céu de junho (mais verão que inverno) e notei uma pipa a serpentear-se em si, numa solitude toda dela. Compadecido, percebi que existia similaridade, e não disparidade, entre nós dois.

 

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Às manhãs, bebo café e, então, alguma esperança ingênua parece reavivar-se em mim: uma espécie, assim, de fortificante popeyano da vida adulta.


Felipe Bezerra Jornalista Escritor, jornalista e membro da Academia Cachoeirense de Letras

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