Sobre Leitura em Papel e... no Celular - Jornal Fato
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Sobre Leitura em Papel e... no Celular

Quando criança, em Guaçui, um dia, na rua sem calçamento, próximo à nossa casa, estava eu, tranquilamente


Quando criança, em Guaçui, um dia, na rua sem calçamento, próximo à nossa casa, estava eu, tranquilamente, lendo um livrinho, enquanto os amiguinhos se esbaldavam numa pelada - jogo de futebol - creio que já com bola de borracha e no meio da rua.

Aí passou alguém mais velho e estranhou muito eu, menininho, estar ali, sentado à beira da calçada, lendo, enquanto os demais corriam atrás da bola. Não me lembro se o estranhamento foi elogio ou crítica que recebi pelo fato de estar lendo em vez de estar jogando pelada na rua, aquilo sim, coisa de criança (mas parece que foi elogio).

Hoje, a leitura continua pouca entre a criançada da idade que eu tinha, mas são mais leitores do que os de meus tempos de criança.

Meu pai Manoel e meu irmão Jairo (uns 12 anos mais velho do que eu) nos alimentavam - a mim e a meus tantos irmãos novos - com livros que adquiriam sei lá aonde. Foi por isso que me tornei leitor voraz de livros, "só" pela oportunidade que tive e pela qualidade da literatura que recebia.

Leitura é aprendida melhor pelas crianças, ontem, hoje, ou amanhã se, ao tempo certo da infância, seja ensinado a elas serem leitoras, mas com instrumentos compatíveis aos tempos vividos... pelas crianças. E se elas não lerem, por falta de incentivo adequado, a culpa não é delas. A culpa é de quem não as ensinou a ler - e a conta vem no futuro.

Comparando, creio que uma criança, hoje, lendo livro ou revista em papel, causará a mesma impressão que causei, lá por 1955/1956, o período em que comecei a me apaixonar pela leitura. Mas alguém tem de ensiná-las a isso.

O que não concordo é, hoje, criminalizar a criançada porque elas estão agarradas em aparelhos digitais, só com brincadeiras e trocando mensagens bobas entre si. A criança que fizer isso, com certeza não está no caminho certo, mas não pode e nem há de ser culpabilizada, já que ela não tem e nem pode ter experiência suficiente para enxergar o "erro" e escolher o melhor caminho.

Cabe aos pais e a quem cuida das crianças, negociar com elas, justo como meu pai e meu irmão fizeram comigo - compraram para mim... livros.

Hoje o papel está acabando, até em favor do meio ambiente, mas não custa muito, não custa nada, na verdade, nós pais (e avós, no meu caso, agora) chegarmos junto às crianças e incentivá-las à leitura, leitura em aparelhos eletrônicos fornecidos a elas... por nós mesmos, que reclamamos muito, depois.

Tente fazer isso com seus filhos e netos; depois, discuta com eles sobre o que resultou das leituras e, tenho certeza, com o tempo, a leitura em papel ficará apenas na memória coletiva, já que a leitura, para eles, filhos e netos, terá sido absorvida pelo que lhe passamos, só que com as armas do nosso tempo, ou seja, menos papel, mais tecnologia e mais leitura. Mais tecnologia engajada com mais leitura, desde que atuemos melhor e mais, e reclamemos menos do que fazemos com nossas crianças... pondo  nelas a culpa.

A leitura é o fim sadio proposto às crianças. Papel ou tecnologia são só meios temporais utilizados para se chegar ao fim proposto, que é a criança aprender a ler e se sentir feliz.

Tenho dito e assino embaixo.

 

Onde o Sol Brilha Mais

Ludmila Clio

(Frases recolhidas do livro que dá título ao texto, recém-lançado, de Ludmila Clio, cachoeirense hoje na Europa. Excepcional. No mesmo nível do texto, as ilustrações de Paula Marcuzzo. Sugiro a aquisição do livro - lá tem muito mais frases ótimas).

"Na vida, é quando nada acontece que a gente se cansa. /// Você já se sentiu tão triste a ponto de um elogio te agredir? /// De repente a gente morre, mas viver é lentamente. ///

Adubo de sonho se chama atitude. /// A minha verdade assusta, mas eu nunca cogitei mentir. /// Quem abraça nossas fragilidades nos devolve mais fortes para a vida. /// Você rega mais os teus sonhos ou as tuas cicatrizes? /// Não me diga que compreende a minha dor: mostra-me a sua cicatriz. /// Perguntar é um ato de coragem - tem resposta que arrebenta. /// Cada mentira que eu conto eu posso provar. /// Decidi gastar teu nome. Repeti, repeti, repeti, até que ele virou um nome qualquer. /// O perigo não é morrer de repente. O perigo é se afeiçoar a coisas que matam a gente aos poucos e acreditar que está vivendo. /// Eu acreditava que autenticidade consistia em falar tudo o que eu penso, mas tenho aprendido que a autenticidade também está no que eu não falo para manter vivo o que eu sinto. /// A palavra atrai, mas é a paz do silêncio que sustenta. /// A cicatrização é mais dolorosa do que o corte em si. /// Tem bagunça que arruma a gente todinho. /// Às vezes a gente trai a felicidade porque quer ser fiel à dor. /// Respeitar silêncios é uma das maneiras mais lindas de amar. /// Alguém que não me faça rir dificilmente me fará sonhar. /// Quem sempre te deixa em confusão não merece as tuas certezas. /// E um dia a gente se pega cortando caminho para evitar contato com quem já foi o nosso destino. /// À medida que falta caráter, a beleza evapora. /// Há companhias que só reforçam a solidão. /// Quando o presente chegar, agradeça pelo passado e o deixe por lá. /// Roubo de esperança é crime hediondo. /// Duas solidões não formam um relacionamento. /// Na dúvida, repara nos olhos. O brilho dos olhos ninguém falseia. /// Parecia alegria, parecia ironia, mas eram gritos de socorro e ninguém ouvia. /// Somos uma bela geração de fotos sorridentes e de travesseiros encharcados. /// Investimos alto nas fachadas, mas por dentro temos apenas paredes. /// Ela espera por ele, ele espera por ela - nada acontece. /// Às vezes a gente para de perguntar, mas continua sem entender. /// Nenhuma realidade é páreo para uma memória que ainda respira. /// Foi do teu silêncio que eu ouvi as piores notícias nesses últimos dias. /// Triste é sentir saudade de pessoas vivas que se fazem de mortas. /// A melhor tecnologia para nos alertar acerca de um perigo será sempre o coração de um amigo. /// O que a gente deixa para amanhã pode estar deixando para nunca mais".

 

ÁGUA ESCORRENDO NA VIDRAÇA

No dia em que Olavo Olina começou a partir dessa para pior, indo tentar explicar suas culpas no inferno, ele acordou bem cedo. Da cama onde estava, via por entre os vidros bem limpos da larga janela, que o pequeno morro permanecia recoberto pela tênue névoa que sempre se apresentava pelos fins de agosto.

Sua visão era só ligeiramente turvada por gotículas de água que se agarravam ao vidro e, de vez em quando, qual lágrimas, escorriam por ele, vindo morrer absorvidas pela madeira velha da janela.

Foi aí que se lembrou das lágrimas, lágrimas de outros, que o perseguiam durante sua existência. Não que se sentisse perseguido. Longe disso. Incomodava é que essas lágrimas perturbavam a marcha dos negócios, que não iam tão bem como antigamente foram.

A manhã nebulosa também trazia pensamentos que não gostava de ter. Dores aqui ou ali, miudinhas e persistentes, acusavam que seu corpo já não correspondia às necessidades de correr para lá e para cá, na atividade frenética que sempre empreendera na vida.

Cedo, ainda assim, em outras épocas estaria de pé, despreocupado das lágrimas ou nebulosidades, ou com celebrações matinais da natureza.

Acordado, assim permanecera. Pensamento diferente de outras épocas começava a lhe cobrar os males que fizera. Descobriu então que, enquanto os bolsos se enchiam, outras partes de seu humano corpo se esvaziavam.

Vazio sufocante, não havia conta que desse trégua aos pensamentos ruins e perturbadores. Descobrira ultimamente, o que naquela manhã se acentuava com crueldade, que alguma coisa lhe faltava, e era impossível tomá-la.

Horas e horas permaneceu com o olhar na vidraça. Os dias passaram. Quando finalmente descobriram o corpo, não se soube dizer por que morrera, ou mesmo se se suicidara.

Crianças brincavam em colorida algazarra em frente à janela. Quem as visse, em despreocupada alegria, sequer imaginaria deixar-se morrer no acompanhar de um fio d'água escorrendo na vidraça.


Higner Mansur Advogado, guardião da cultura cachoeirense e, atamente, vereador

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