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Retrato Humano

Encontrava-se em leito hospitalar. Não recordava o motivo. Não lembrava o número de cirurgias que fora submetido


- Foto Reprodução Web

Encontrava-se em leito hospitalar. Não recordava o motivo. Não lembrava o número de cirurgias que fora submetido. Apresentava-se a disposição dos vários procedimentos indicados e para as intervenções programadas. A doença progredia, não sabia mais dizer qual a causa inicial da hospitalização. Parecia um paliativo, tudo aquilo que se realizava. A medicina evoluíra e era um sem fim de intervenções. Ainda assim, pacientemente, assumia seu fardo. No fundo, permanecia a esperança da cura física. Pela demora na melhora clínica, pensava em outros fatores para recuperação da saúde. O segredo estava na lucidez. Na permanência da memória. As imagens das artérias cerebrais não eram limpas. Apresentavam-se turvas e obstruídas em seus trajetos e leitos. A nitidez apresentava-se em seus diálogos. Restava o pensamento. A nitidez de suas memórias surpreendia aos médicos e familiares. Em suas conversas, ele brincava com as palavras. Palavras guardadas de uma maneira que nem ele entendia como foram surgindo, mas, certamente, apreendidas com as muitas histórias de seus avós e com as várias leituras em livros de amigos.

Contrariando as imagens cerebrais que mostravam a obstrução de várias artérias, a memória permanecia fiel a sua história de bom ouvinte e bom leitor. Permanecia a memória recente e antiga. Guardava os detalhes da infância, dos filhos, dos pais, avós e dos jogos de futebol. Não importava se os movimentos musculares já não respondiam aos impulsos cerebrais. As ordens cerebrais já não eram obedecidas como nos bons tempos de vigor físico. Continuava surpreendendo com a força da palavra. Com seu grito. A voz era ouvida por muitos. Por isso, continuava surpreendendo. Surpresos, testavam sua memória. Perguntavam sobre sua última consulta. O nome do médico que o atendera. Não se lembrava de imediato. Uma falha, o início da perda da consciência, pensou. Porém, logo usou da famosa esperteza. Lembrou-se da visita ao seu médico no mês de janeiro. Lembrou-se da Folia dos Reis, dos três reis magos. Disse: Foi um dos reis magos! Qual? Perguntaram. Melquior? Não. Baltasar? Não. Gaspar? Sim, foi este. Pensou. Talvez fosse o que todos precisavam, luz e sabedoria dos três reis. Quem sabe a arte? A arte do Rembrandt, Leonardo da Vinci, Caravaggio, pudesse humanizar e diminuir o tecnicismo.

Os cabelos brancos e ralos aparentavam um vasto conhecimento. Lembravam a antiga sabedoria oral dos africanos. Sabedoria sem o conhecimento dos bancos escolares modernos; conhecimento adquirido de várias histórias sem os aspectos acadêmicos. Queixava-se dos muitos exames e das poucas conversas daqueles que tomavam conta da sua doença. Falavam de imagens, filmes e fotos, de suas artérias, veias, rins, coração, fígado, dos muitos órgãos internos. Ele queria apenas falar o que sentia. Queria ser ouvido. Não para relatar a dor física. E sim a vontade enorme de assistir ao pôr do sol. E como não dormia toda a noite, pois, possuía o dia para o descanso, gostaria também, de assistir ao nascer do dia e admirar a lua em seu esplendor. Quando da próxima visita do seu médico, pediria apenas, que o ouvisse e que esquecesse um pouco dos filmes dos seus órgãos internos. Que tocasse sua pele e o deixasse assistir ao ir e vir das coisas da natureza.


Sergio Damião Médico e cronista

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