O molequinho com sorriso de maré
Crônica inspirada na canção "Ventou, ventou", de Jorge Vercillo
"Está vendo aquele feixe de sol, lá longe, que, depois de ter vencido as nuvens cinzentas, agora tinge o oceano de laranja? É a esperança; finalmente, ela está por perto", comento com a minha garota com rosto de coração, a quem desenhei-concebi, com meu indicador direito apontado para a infinitude, há algumas alvoradas de janeiro.
(Ocorre que, dos últimos verões para cá, a lavoura de sua fé passou por momentos de quase absoluta, senão total, aridez; coube tão somente a mim, desde então, cultivá-la com a resiliência de um cabra sertanejo, daqueles que, devotos de Padim Ciço que são, jamais deixam de aguardar pela chuva, ainda que a estiagem teime em castigar sua plantação, sobretudo sua obstinação.)
"Roda moinho/ Trazendo boas novas, quem será/ Despenteando toda mangueira/ O vento quer brincar/ Lá vem mocinho/ Em zigue e zague pelo capinzal/ Levanta as saias, tremula bandeira/ Bateu no mar/ Ventou, ventou...", verseja, timbre em tom marino, o cantador-pescador, a poucos metros de nós dois, narrando que o vento-erê, mensageiro de ventania-mãe (Eparrei), havia acabado de vir do noroeste-anil.
"E o que ele veio fazer aqui?", questiona minha garota, num misto de perplexidade, dúvida e contemplação; sentimentos e hesitações que brilham nas íris de seus olhos. "O vento traz no ventre o teu amor, amor", responde melodiosamente a maresia-rainha (Odoyá), qual um arcanjo, ao nos anunciar a chegada de nosso primogênito.
"O bebê de vocês dois virá à luz já incumbido de uma doce missão: apenas com seu sorriso, o molequinho vai ensinar a todos que a perseverança sempre há de se sobrepor à covardia; que a convicção, quando divina, sempre há de transcender ao ceticismo humano; que a felicidade, feito a lua, sempre há de ser soberana à tristeza", vaticina.
A maresia-rainha também nos antecipa que, através do sorriso de nosso vindouro filho, leremos a poesia da serenidade, segundo a qual paciência rima com devoção. "O sorriso dele terá força acolhedora; nele, enfim, estará o porto seguro que tanto almejaram. O molequinho com sorriso de maré será a glória triunfal e definitiva do amor de vocês dois", preconiza ela, antes de se recolher de volta à sua morada.
(Crônica inspirada na canção "Ventou, ventou", de Jorge Vercillo, e originalmente publicada no jornal A Gazeta, em novembro de 2014)