O engraxate - Jornal Fato
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O engraxate

Um mestre na arte de engraxar tem que estar preparado para qualquer situação.


- Foto: Reprodução/Web

Havia, entre nós, engraxates, uma convenção: quem chegar primeiro, escolhe o lugar pra colocar sua cadeira.

Já era a terceira vez que eu, distraidamente, fazia a mesma pergunta ao mesmo cidadão, que por ali passava: "Quer engraxar, moço?"

Ah! pra quê! Nem que me cortem o pescoço eu repito, aqui, a enxurrada de palavrões que ele despejou nos meus ouvidos. Por fim me ameaçou: "Se você me perguntar de novo, dou-lhe um sopapo". Do jeito que o sujeito ficou bravo, dava mesmo.

Naquele dia eu fui mais esperto do que o Bicalho, meu principal concorrente. Quando ele chegou, ali na esquina da rua Joaquim Vieira - na calçada das Casas Franklin - (era o melhor ponto do Guandu), eu já estava no segundo par. E, de quebra, já tinha levado um esporro de um desconhecido.

Um mestre na arte de engraxar tem que estar preparado para qualquer situação. Dentro de sua caixa devem estar dois pares de escovas (duas para sapatos pretos e duas para vermelhos, ou marrons). Essas escovas, com pelos bem macios, têm dupla função: tiram a poeira do calçado e, ainda, servem para dar-lhe o brilho. Para um trabalho perfeito, usam-se as duas ao mesmo tempo, uma em cada mão, em sentido inverso, uma de cada lado. Uma vai, outra vem...

Para passar a graxa, nada de escova, de pedaço de pano... É com a mão mesmo, a fim de que a graxa se espalhe por igual. (Sujeira da unha sai com acetona).

Agora, é só esperar um pouco, passar a escova, de novo, e, finalmente, a flanela.

Havia uma tabela de preços. Se a gente cobrava, por exemplo, cinquenta centavos por sapato, não podia cobrar menos de oitenta pra engraxar um par de botinas.

O sapato de duas cores - marrom e branco, por exemplo - dava um trabalhão danado. Olha só. Primeiro a gente cuidava do marrom: escova, tinta, graxa, flanela... Só depois é que se preocupava com o branco. Um vidrinho de alvaiade, um pincel bem fino, muito cuidado naquelas costuras... Que beleza! Eu quase saía no braço com o Bicalho, na disputa de um par de sapatos de duas cores. O preço? Ah! Duas ou três vezes mais que um calçado comum.

Também era muito disputado o sapato todo branco, mas dava pouco trabalho. Era só o alvaiade e mais nada. Nem escova, nem flanela...

Entre mim e o Bicalho uma outra competição à parte. Aos sábados, a gente visitava casa por casa daquele bairro à procura de sapatos pra engraxar. "Vamos ver quem consegue mais?" - olha um desafiando o outro! O recorde ficou mesmo com o Bicalho: ele conseguiu descolar doze pares, num único sábado.

Ainda tenho uma esperança. Se algum dia eu me encontrar com o Bicalho, por essas estradas da vida (ô, Bicalho, cadê você?), lanço-lhe um desafio: traga sua caixa que eu levo a minha. Nosso encontro será naquela mesma esquina da rua Joaquim Vieira. Mudo de nome se eu não conseguir, nas casas daquele bairro, treze pares de sapatos pra engraxar.

Ah! já ia me esquecendo. Dia do Engraxate, 27 de abril. Vamos comemorar!

 


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