Meu pai - Jornal Fato
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Meu pai

Era assim, diferente no espírito. Altruísta. Espírito irrequieto. Falante. Eloquente. Impaciente. Difícil no lidar. Não aceitava argumentos


- Foto: Reprodução/Web

Ele era como todo pai, como a maioria dos pais. Com erros e acertos. Muito mais acertos do que erros. Exagerado nos elogios à prole. Considerava o primogênito um craque da bola e contava histórias de jogos inexistentes. Um torcedor alternante: ora flamengo; ora fluminense. Tricolor de coração e flamenguista pelos filhos. Uma imaginação fértil. Um falar sem parar. Irritava-se com os que competiam na verborragia. Gostava daqueles que tinham paciência para ouvi-lo. Era assim, diferente no espírito. Altruísta. Espírito irrequieto. Falante. Eloquente. Impaciente. Difícil no lidar. Não aceitava argumentos. Com o desejo, uma decisão. Os conhecimentos eram muitos, provenientes da leitura. Menos dos anos em bancos escolares. Diploma não possuía. Possuía a memória forte e raciocínio rápido. Dos filhos exigia o estudo. Única riqueza a ser deixada, afirmava. Na minha geração poucos pais fugiam a um comportamento: severidade. Os limites eram rígidos. Maleabilidade dependia da mãe, o ponto de equilíbrio. Eles não precisavam ser tão rígidos, nem tão sérios, demoraram a perceber o que nós aprendemos com seus exageros. No envelhecimento, com os cabelos brancos e ralos, a paciência com os filhos dos filhos. Interessante como mudamos comportamento com o passar dos anos. Com a doença, a aceitação da mudança no hábito alimentar, a abstinência do fumo e a procura do exercício físico não mais possível. Impossível definir um pai. Podemos descrevê-lo. Como as castanheiras que se espalham por Cachoeiro. Encontra-se com folhas avermelhadas alternadas com as alaranjadas. Belas, nesses meses, com suas folhas esparramadas pelo chão anunciam um ser em metamorfose, um pai em formação, um velho senhor desnudo. As histórias de nossas vidas se misturam como as folhas vermelhas e alaranjadas pelo chão. O tempo destrói a carne, os músculos e ossos, fica a alma e as lembranças. A relação com um pai transcende. Sempre me perguntei sobre a transcendência. Acho que é a sensação visual, os traços físicos no outro, a hereditariedade, a imortalidade. Quando perdemos o elo físico com o pai, algo se desgarra, sentimo-nos sozinhos em qualquer idade. Se me dessem uma escolha: gostaria da eternidade como pai, e nos momentos tristes e inseguros, ser o filho. Gostaria dos momentos da inocência da infância, onde tudo o pai pode e resolve. Os poderes do nosso pai. Muitas são as histórias. A primeira vez que provei um misto-quente, estávamos a caminho de um jogo de futebol, não sei se foi o lanche ou a presença dele. Só sei que nunca mais provei um sanduíche como aquele. Nunca mais fui o mesmo. Pensando bem, como filhos, muitas vezes, não há mais tempo para mudar. Como pais, podemos aprender. O difícil é vencer as distâncias.

O dia dos pais nos leva às boas recordações. Lembra aos filhos que o pai - embora humano e sujeito a erros, é como um anjo da guarda, uma guarda leve, apenas protetora. O pai deve deixar os filhos voarem, protegendo de longe, mantê-los livres para as realizações de seus desejos. O pai, quando necessário, leva os filhos pelas mãos, quando os soltam, eles ficam em suas lembranças, apesar da distância e aparente abandono, e guando não estão vivos em seus pensamentos, devido a idade avançada, ainda assim, o pai leva os filhos... Leva os filhos em seus esquecimentos.


Sergio Damião Médico e cronista

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