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Atualmente o chef de cozinha que eu mais admiro é o João Diamante


Atualmente o chef de cozinha que eu mais admiro é o João Diamante. A trajetória dele é fantástica, mas falar dela ficará para outra oportunidade, porque eu quero comentar aqui sobre uma postagem recente dele nas redes sociais, quando ele se coloca como um machista em desconstrução. E em um olhar mais aprofundado, me perguntei: mas não somos (quase) todos? Digo isso falando da minha geração. Cresci em uma casa onde eu não podia chegar tarde, ao passo que meu irmão saía na sexta com todo o direito de só voltar sábado. Ou domingo. E olha que não fui uma adolescente acorrentada a regras não. Comparando com muitas amigas, eu tinha até certos "privilégios" no quesito liberdade. Mas, se a comparação fosse com meu irmão, os privilégios eram dele. Nunca ouvi "é porque ele é homem". Mas isso era tão óbvio que o silêncio ou o grito davam na mesma. E não foi só com o machismo corriqueiro e arraigado que a minha geração cresceu. As piadas racistas e xenofóbicas eram parte do cotidiano em casa, nas brincadeiras de rua, na escola e mais para onde quer que fôssemos. Palavras depreciativas sobre mulheres e culpabilização da vítima, idem. Era normal que alguém tivesse "passado a mão" ou feito comentários ofensivos por causa da roupa, da hora, do cabelo, do sorriso, do batom, da unha.

Sorte de quem, da minha geração ou de outras passadas, e até das mais recentes, reconhece-se ainda em construção. Um dia desses minha filha falou que não tinha gostado de ir a certo lugar porque os homens se utilizavam do termo "isso é coisa de viadinho". Ela me alertou que o termo não é apenas falta de respeito, mas crime. Ponto pra ela que aprendeu isso desde cedo e sorte a minha que ouvi dela esse alerta. Algumas coisas são tão incutidas que a gente não fala, mas acaba deixando passar batido. E aí alguém vai dizer: Ah! Mas esse mundo tá muito chato". O que é chato? Aprender o que ofende o outro e não fazer mais? Já experimentou ser empático? Ler sobre o assunto? Conversar com pessoas que já foram vítimas de preconceito? Tenta aí. Aprender nunca é demais. E fazer o certo não dói. O que você chama de mimimi para o outro pode ser um gatilho. Aproveita que o setembro é amarelo e cresce.

Você já se deu conta como é difícil para uma mulher brasileira andar sozinha na rua? Ou usar a roupa que sentir vontade de usar? Ou outras coisas ainda como esperar um ônibus, andar de táxi ou ir ao cinema sozinha? Há quem diga que as feministas são um saco. Pior. Há mulheres que dizem isso. Essas podem, por exemplo, queimar o título de eleitor, o diploma ou a carteira de motorista. Ou estão achando que tivemos isso de mão beijada? Algum homem bonzinho foi lá e concedeu? Não. Muitas mulheres lutaram e morreram para que chegássemos aqui hoje. E o caminho a percorrer é ainda longo. Não dá para tolerar o intolerável. Respeito nunca é demais.

Em algum momento da vida a maioria de nós mulheres já foi assediada ou já viveu uma relação abusiva. E é muito difícil olhar no espelho e assumir isso pra gente. E quanto mais eu penso, leio, escuto e observo mais eu tenho certeza de que sou uma pessoa em formação, tentando ser melhor a cada dia. Não me importa que me chamem de chata, brava ou qualquer outra coisa. Importa-me sim errar, ser injusta ou engolir coisas que a anos atrás eu engoli pelo medo e pela falsa noção de "normalidade" que cresceu comigo. Eu não me envergonho de ter voz e querer ser ouvida. Eu me envergonho pelas vezes que me calei, que não fui embora correndo, que não percebi o abuso ou que não denunciei o assédio. Eu me envergonho e peço desculpa a todas as mulheres do mundo por minha falta de conhecimento, de empatia e de coragem. Peço desculpas pelas vezes em que eu usei um termo pejorativo para qualificar qualquer uma de nós. Eu sou um ser humano tentando ser melhor. E ainda que às vezes seja uma escolha solitária e sujeita a críticas, ela tá feita. Meus preconceitos, silêncios e barreiras estão em desconstrução. 

 


Paula Garruth Colunista

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