Retrovisor - Jornal Fato
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Retrovisor


Naquele tempo, quando eu tinha a sua idade, tive um amor, morava no exterior, ganhava três vezes mais, andava de Cross Fox, comprava flores na esquina, fazia feira às quintas e morria de amores pela casa comprada há dez anos decorada por um amigo arquiteto. Tempo bom, de varanda de copos espalhados sempre cheios de amizade e bem-querer e de gente sem pressa de ir embora, amontoada para ver fogos de artifício e depois brindar ao que virá. Tempo de besteiras confidenciadas, viagens desavisadas e perigos calculados. Vida velha de costumes, rotinas e satisfações, de rostos conhecidos e reencontros programados. Uma dose de saudade com duas pedrinhas de gelo, por favor. 

 

Um amigo interrompe o pensamento longe e mostra a estrada adiante. "Bobagem olhar pelo retrovisor, minha querida, se podemos seguir caminho", vai falando enquanto dirige. Meu coração ignora. Quero de volta os risos que disfarçavam a dor de estar longe de casa, a indiferença dos vizinhos sempre incomodados com a movimentação na casa da moça brasileira, e as noites insones naquela terra que jamais chamaria de minha. Devolvam meus sonhos realizáveis, meu lugar inseguro e cheio de possibilidades. Onde vivi anonimamente erros e acertos, sem que ninguém mais - além de mim mesma - condenasse ou aplaudisse. "Vê a estrada? Desperta meu amigo". Sim, vejo a metáfora longa e sinuosa, com placas apontando direções, alertando perigos e próximas paradas. Reclamo dos buracos, do asfalto ruim, do excesso de pedágios. 

 

Começa a chover e peço para voltar, pode ser um aviso de que não devemos continuar, um mau presságio, um recado do destino. Daquele ponto em diante meu amigo ficaria em silêncio, sem entender a ansiedade de quem já deveria estar habituada a mudar, desfazer planos, quebrar protocolos, assinar desacordos, perder a linha e ser mais uma a não cortar os pulsos ou bater em retirada feito inimigo despreparado.

 

Ele não ousava me olhar para não ter que concordar que mudança não é para os fragilizados, sensíveis ao cheiro de casa e aos apegados à paisagem do lugar. Pois que teria que me explicar por que o desconhecido apavora até quem constrói a estrada, imagine quem está aprendendo a andar nela. Numa coisa meu amigo tinha razão: a felicidade não está na chegada nem na partida; a felicidade é a própria estrada. A estrada do coração, do inconsciente, do horizonte, do fim de tarde e lua cheia, retas e desvios. Então, peço boa sorte e não olho mais para trás. 

 


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