Reesperançar - Jornal Fato
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Reesperançar


Certamente a modernidade é líquida. São tempos líquidos em que tudo muda muito rapidamente, em que nada é feito para ser sólido, como diria o recentemente falecido Zygmunt Bauman, sociólogo, professor e um dos mais respeitados intelectuais da atualidade.

 

É essa modernidade líquida que promove inversão de valores, leva a paronoias em busca do corpo perfeito, endeusa celebridades, prioriza o ter no lugar de ser,  o que causa endividamento crescente, e muitos outros problemas que nos jogam, a cada dia, num mundo de incertezas. Nada parece feito para durar.

 

Disso resultariam, entre outras questões, a paranóia com segurança, e até a instabilidade dos relacionamentos amorosos. É um mundo de incertezas. E cada um por si, afirma o sociólogo.

 

"Nossos ancestrais eram esperançosos: quando falavam de 'progresso', se referiam à perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Nós estamos assustados: 'progresso', para nós, significa uma constante ameaça de ser chutado para fora de um carro em aceleração".

 

Se nossos ancestrais eram esperançosos, parece não ser o nosso caso. Progresso atualmente é alimentar a cultura do ódio. Nos deparamos com a notícia de que uma menina umbandista é apedrejada no Rio de Janeiro por causa da fé que professa, prostitutas são agredidas por jovens de classe média alta, torcidas rivais se digladiam até a morte.

 

Sem falar na gigante banda podre da política e do poder econômico que incentiva a guerra de classes, num verdadeiro ganha x ganha para quem detém o poder político e econômico. A sensação é de que perdemos o rumo. É para desesperançar.

 

Talvez o grande escritor Érico Veríssimo hoje mudasse uma de suas frases mais conhecidas. Ele dizia que o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. É indiferença, descaso, negligência, maldade, deslealdade, ódio mesmo.

 

Voltando ao Bauman:"Houve muitas crises na história da humanidade, muitos períodos de interregno, nos quais as pessoas não sabiam o que fazer, mas elas sempre acharam um caminho. A minha única preocupação é o tempo que levarão para achar o caminho agora. Quantas pessoas se tornarão vítimas até que a solução seja encontrada?" 

 

Será que há caminho de volta? Ou estamos diante de um labirinto, sem o novelo de lã de Teseu, que permitiu o seu retorno vitorioso à Grécia? A cultura do ódio vai dominar a sociedade até quando?

 

Até quando, em nome da religião haverá preconceito e discriminação? Até quando, em nome de uma superioridade inexistente, a desgraça alheia será comemorada sem nenhuma ponta de remorso ou pudor? São muitas perguntas, por hora sem respostas.

 

Talvez a solução seja desconectar-se do mundo. Não assistir televisão, nem ler jornais, fugir das redes sociais e de toda e qualquer relação virtual. Fazer como aquela mensagem imagética dos macaquinhos: não falo, não ouço e nem vejo.

 

 Quem sabe isso seja suficiente para descontaminar do ódio crescente e indiscriminado que insiste em nos rodear. Mas como a zona de conforto nunca foi a minha praia, talvez seja, mais uma vez, hora de arregaçar as mangas e partir para a luta. É o que nos resta, para reesperançar.

 

Encerro lamentando que os dias sejam tão maus, recorrendo às palavras de Mário Quintana. " A indiferença é a maneira mais polida de desprezar alguém".


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