Faz de conta - Jornal Fato
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Faz de conta


Sabe aquela situação do pobre sentir-se acuado ou diminuído ante as dificuldades da vida? De sentir-se culpado pela miséria e falta de oportunidades em que vive? Sabemos, mas ele também precisa saber, com todas as letras e em alto e bom som, que ele é a vítima.

 

Ouvi algumas frases aparentemente comuns, mas pronunciada pelo escritor, poeta e jornalista moçambicano Mia Couto. Claro que ganharam maior significado, vindas de uma pessoa que transita com absoluta segurança da poesia à prosa, da política à ecologia e da literatura à medicina.

 

"Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza". Aparentemente tão simples né? Só que não. Mia disse ainda que a pobreza não pode ser escondida, já que existe nos dias atuais um esforço para exibir falsos sinais de riqueza. A fala faz parte da do discurso do escritor na abertura do ano letivo do Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique.

 

"A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza", reforçou. E aí vejo os esforços feitos para viver de aparências, de mostrar um país nos trilhos, quando o trem já descarrilhou há muito tempo. Claro que para os pobres, já que os mi, bi, trilionários continuam pagando migalhas de impostos e recebendo todas as benesses, reservadas para si e aos seus.

 

"Aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei". Dizem que a frase é de Getúlio Vargas. Não tenho certeza, mas se for, continua tão atual quanto no século passado, quando foi pronunciada. Infelizmente. Mia Couto vai além, após dizer que a vergonha deve ficar com quem cria a pobreza, mas não é isso que vemos.

 

Nos deparamos cada vez mais com moradores das comunidades dos grandes centros ou das periferias das pequenas cidades envergonhadas em dizerem o endereço, com medo de perderem a vaga de emprego que estão pleiteando.

 

O autor enfatiza que estamos vivendo num palco de teatro e de representações, e que cabe às escolas exaltar a humildade e a simplicidade como valores positivos. Ousaria acrescentar que as igrejas, os clubes de serviços, o poder público em todas as suas esferas e as instituições deveriam incentivar esses mesmo valores. Quem sabe não é a nossa esperança de vivermos em uma sociedade mais sensível, em que a empatia esteja sempre na pauta do dia?

 

Grosso modo, o autor também falou sobre uma bela embalagem com conteúdo medíocre. Ou uma embalagem caprichada, mas vazia. "A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma essência da cultura. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo".

 

Mais uma vez parece bem simples. Mas é igual aquele produto anunciado há algum tempo. Parece, mas não é. Se isso acontece em relação à pobreza, pode-se dizer o mesmo em relação à violência à mulher, que se repete todos os dias.

 

E da mesma forma, o protagonista da violência parece não se envergonhar. Quem fica envergonhada e apresenta todas as desculpas é a mulher, que está com pontos na cabeça e diz que caiu da escada. Na semana seguinte a lesão é outra, mas a desculpa é a mesma. Nova queda da escada.

 

O padrão que temos percebido é que, por motivos variados, entre eles garantir estudo e condições de vida razoável aos filhos, as mulheres se submetem à violência doméstica por muitos anos. Até que os filhos crescem e as impulsionam a romperem esse ciclo de violência.

 

É uma pena que ainda tenhamos que nos deparar com a violência de gêneros todos os dias. Algumas, muito bem disfarçadas. E outras expostas em olhos roxos e lesões que deformam corpos e a autoestima de milhares de mulheres pelo país afora.

 

Infelizmente se dissermos luz, câmera, ação, nesse espetáculo de horror a cor que veremos prevalecer será o roxo em rostos e corpos femininos, expostos aos riscos de feminicídio todos os dias. É repetitivo, mas necessário. Não se cale. Nem acredite na bela embalagem, quando a realidade apontar no sentido contrário e vizinhas e amigas caírem da escada com frequência. DENUNCIE: 3511-1616.


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