Desassossego ? um ano depois - Jornal Fato
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Desassossego ? um ano depois


Sempre desejei um filho seu, que não veio porque eu estava esperando a hora certa. A hora em que nossa relação ficasse calma, em que passaríamos mais de vinte e quatro horas sem brigar, quando você deixasse de me bater e eu deixasse de gritar. Não queria uma criança que vivesse em um ambiente sem paz. Por isso nosso herdeiro não chegou.

 

Fomos mestres na arte de guerrear no amor. E, mesmo agora, eu sinto falta da batalha que era a vida ao seu lado. Quase me convenço que sou louca, mas recuso qualquer tratamento. Você é o mal do qual ainda não decidi se quero me curar.

 

Falo de uma criança agora porque estou em uma cama de hospital por causa de um aborto. Depois de você andei por aí buscando desesperadamente alguém que preenchesse esse buraco que sua ausência causou, o que foi mais ruim que bom. Tive pressa em fechar um ciclo que insiste em continuar aberto. Fui afoita achando que alguém teria o poder de abrandar a minha dor, e jogava esse peso em cima de todos que resolveram aparecer, como se cada um deles fosse o culpado do pesadelo que foi nossa história. O adorável e delicioso pesadelo. O resultado é que de todos eles ninguém suportou o fardo e, quando me dei conta, estava grávida. Grávida de algum desses homens que agora formam a comissão "Interditem a Louca da Ana".

 

Não foi difícil comprar pela internet o que me livraria de uma criança que eu não desejei, não planejei e que sequer faço ideia de quem seja o pai. Mas o resultado de fazer isso em casa sozinha não foi o que eu esperava, e agora estou aqui, no hospital, vítima de mim, culpada e, o que é pior, querendo a sua presença.

 

Imagino nesse momento sua cara de julgamento diante de tudo que conto, achando que me tornei uma pessoa muito pior fora de suas rédeas. Mas não me aponte o dedo. Não sou uma qualquer. Sou o resultado do que permiti que você fizesse comigo. Você e todos os outros.

 

Continuo sangrando e, vendo esse sangue todo, quase desejo a morte. Ir embora junto com o que, talvez, fosse a minha salvação. 


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