Construção - Jornal Fato
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Construção


Construção Acordou com letra e melodia na voz do cantor preferido na cabeça. " Amou daquela vez como se fosse a última, beijou sua mulher como se fosse a última, cada filho seu como se fosse o único, atravessou a rua com seu passo tímido"...

 

Ainda cantarolando, pensava nos últimos acontecimentos, lembrando das desventuras do trabalhador de olhos embotados de cimento e lágrimas tão suavemente musicado, ao ponto de conferir poesia a momentos tão árduos.

 

Quase sem perceber, viu-se dançando ao som da música agora apenas sussurrada. Como palco, a sala de sua casa. Muitos rodopios depois, bateu um incômodo desagradável quando lembrou do triste fim daquele trabalhador, que agonizou no passeio público, na contramão atrapalhando o tráfego.

 

Triste fim, repetiu para si mesma. No entorno, a vida seguia seu curso. Nenhuma lágrima ou homenagem àquele que já saiu de casa com a sensação de ponto final. Mesmo resistindo, pensava no quanto somos descartáveis, apenas tijolos que podem ser repostos, substituídos sem nenhuma cerimônia, tristeza ou dor. Para o bem e para o mal, a engrenagem continuará funcionando, com peças originais, de qualidade superior, ou será substituída por similares. Nada importa, a vida seguirá o seu curso, à revelia dos que partiram cedo demais, aparentemente antes do tempo. Pensando nisso, e ainda com a melodia grudada no pensamento, se dá conta de que é preciso assumir o controle, escrever a própria história e dar a ela um final melhor. Se não dá para ser felizes para sempre, como nos contos de fada, que a felicidade seja intensa e eterna enquanto dure, como diria o Poetinha. Nada de amar como se fosse a última vez.

 

Mas amar intensamente como a primeira, com a certeza de que muitos anos sublimes e inesquecíveis virão. Construção com início, meio e fim, permeados de pontos, vírgulas, e em alguns casos, reticências, sempre que necessário. Então, nada de viver engolindo cachaças e tossindo desgraças, nem de permitir que moscas bicheiras sequer passem perto. Nada será como antes. É uma promessa que assume antes de tudo consigo mesma. Não vai, em nenhuma hipótese, acabar no chão feito um pacote bêbado, na contra-mão atrapalhando o sábado. Ao contrário, vair viver intensamente porque está bem claro que é tempo de recomeço, e mesmo que a melodia tão linda, de letra tão significativa continue embalando seus passos, o fim será diferente. E quando a paz derradeira e redentora enfim chegar, tudo que é essencial já terá sido dito e vivido. De forma intensa, sem surpresas desagradáveis, dentro de um roteiro escrito a partir de decisões sólidas, em desenho mágico. Como mágica e surpreendente deve ser a vida de todos os que ousam ressignificá-la, a qualquer tempo. Essa é a construção que todos merecemos.

 

E da mesma forma que o dia começou, embalado pela música de um dos maiores ícones da música popular brasileira, termina com a mesma melodia a embalar passos e sonhos. Construção. Reconstrução. Começo. Recomeço. Significar. Ressiginificar. Em tempos difíceis. De busca pela superação. De esforço supremo. Que Deus nos ajude a nos cercarmos de pessoas que dancem e se alegrem com as nossas histórias embaladas em música e poesia, apesar dos tempos sombrios. Que Deus lhes pague.


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