Cheiro Suave - Jornal Fato
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Cheiro Suave


A primeira vez que fui ao Teatro Carlos Gomes, em Vitória, não tive o prazer de aproveitar a linda arquitetura, nem desfrutar do belo espetáculo.

 

Entre o ônibus e a porta de entrada pisei desavisadamente em cocô de cachorro. Estávamos num grupo grande de amigos, e claro, o cheiro desagradável inundou o ambiente e arrancou comentários pouco afáveis de todo.

 

"Credo, quem é esse infeliz que está com um rato podre embaixo do braço", indagavam-se todos, inclusive eu. Esse fato, ocorrido na minha adolescência, quando a turma toda, como prêmio não sei exatamente de quê, ganhou de presente uma viagem à capital, a primeira vez de muitos, tornou-se inesquecível, mas não pelos motivos esperados.

Na saída, a professora falou que todos deveriam olhar o solados dos kichutes e ver se não haviam pisado em cocô, para que o fedor não fosse nosso companheiro na viagem de volta.  Uns riram, outros zombaram e todos falaram (inclusive eu, mais uma vez), a uma só voz, que quem estivesse com o pé sujo seria deixado para trás.

Qual não é a minha surpresa quando, na fatídica inspeção, fui identificada como a "sujismunda", um personagem porcalhão que protagonizava uma campanha do governo que dizia que "povo civilizado é povo limpo".

Kichute limpo, mas não completamente cheiroso, voltamos, e por 140 km virei o foco da zoação coletiva, que se estendeu por mais uma semana pelo menos. Eu, que sempre partia para as vias de fato para impor respeito, resolvi levar tudo na esportiva.

Sujismunda ou não, entrei na brincadeira. Se não pode vencê-los, junte-se a eles. Foi o que fiz, e logo arrumaram outra incauta, por outro motivo qualquer. As lembranças trazem algumas lições preciosas.

Lição Nº 1: às vezes o podre que vemos no mundo e apontamos no outro, com o dedo imundo, parte de nós. Eu me desafio todos os dias para deixar um cheiro suave pelos caminhos que percorro. Isso é prioridade absoluta. Questão de escolha.

"Como um perfume que se espalha por todos os lugares, somos usados por Deus para que Cristo seja conhecido por todas as pessoas. Porque somos como o cheiro suave do sacrifício que Cristo oferece a Deus, cheiro que se espalha entre os que estão sendo salvos e os que estão se perdendo". (II Coríntios 2: 14-15)

Lição Número 2: às vezes o que vai comprometer sua história gruda em você, causa mal estar nos outros, e só bem mais tarde percebe-se que que alguma coisa está errada. E nesse caso, existem duas opções. Livrar-se o mais rápido possível, após identificado o problema, e aguentar as consequências por isso.

Ou seguir em frente, emporcalhado, e fazer de conta que não viu, deixando pelo caminho um cheiro desagradável, como se o problema não fosse seu.

Há momentos em que é preciso exercitar o poder da escolha, limpar os sapatos, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Mas isso não é possível sem a tomada de decisões. E às vezes isso exige coragem e determinação.

O Teatro Carlos Gomes é inesquecível. E as lições que suas lembranças me trazem também. E me fazem querer, mais uma vez, superar o desafio de deixar pelo caminho um cheiro suave. Que assim seja.


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