Assombramentos - Jornal Fato
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Assombramentos


 

Confesso a vocês, meus nobres leitores, que tenho andado desencantada. Sei que isso se constitui um erro legítimo meu, mas minha alma tem doído com frequência nestes dias. Talvez, não tenha comungado direito com a vida. Talvez, não tenha escolhido cores certas para pintar meu quadro, nem tão pouco tenho colocado tempo para contemplar da janela.

O mundo tem andado triste, caminhado entre trilhos e estradas um tanto desgastados. Tenho visto que nossas ruas estão desertas, apesar das gentes que passam de lá para cá cotidianamente. Ganhamos notícias, todos os dias, de que muitas coisas vão mal, de que há sofrimentos demais entre nós.

E, para acinzentar, vemos que as pessoas têm se amado cada vez em menos medida. As pessoas têm se fechado em seus cômodos e, lá, se mantidas, até, quem sabe, a tempestade passe, o frio diminua, o medo não esmoreça . Temos acanhados nossos sentidos e nossa coragem. Temos sonhado, porém, acordamos e recolhemos os sonhos a linhas da ilusão. Contudo, sou como Eduardo Galeano, insisto que dos medos podem brotar coragens.

Insisto, por isso escrevo, que é possível luzes embora permaneçamos, muitas vezes, na escuridão. Não quero continuar acordando com temores de que o dia tem sido noite demais, que temos recolhidos mais armas que flores, que temos deixado o mal germinar sementes, que temos engolido sem degustar sabores.

Não sou descrente de humanidade, mas sou humana demais para, por vezes, não desbotar. As minhas dores me fomentam que são preciso mudanças, é necessário mudar a alma da velha e feia casa para se reconstruir mais sólido, para que haja novas andanças. Se não nos causar desconforto, não conseguiremos clamar por novas esperanças. Não conseguiremos ver além do que nos assombra e entristece.

Caso nos confortemos com os calos, não trataremos dos pés e teremos nossos passos sempre acobertados por "aqueles" sapatos. Hoje, "não quero faca, nem queijo. Quero a fome", como Adélia Prado nos disse. É a fome que me tirará das falsas alegrias, dos superficiais desejos e das anestesias sociais. É o descontentamento que nos retirará do gozo comum, daquele que nos mantém comendo somente migalhas, dispostos a sobreviver somente com o que cai da mesa.

Colasanti afirma que nos acostumamos para não ralar na aspereza e, assim, preservar a pele. No entanto, o costume nos retarda na vida, ignora a veracidade dos sonhos e acomoda, em um pequeno espaço, a vontade da esperança. E, ali, mantemos limpo, arrumado para que nada saia do lugar.

Sempre tive medos das arrumações. Das coisas que queremos manter intactas, organizadas para que nada escape a lógica das coisas, para que nada seja refutado. Dói demais ser assim; se dá a não banalização das coisas, mas não deixo de anunciar dias melhores porque creio neles. Mesmo, nestes dias, mesmo sem colher frutos, continuo dividindo sementes, haja vista ter uma crença desenfreada que acordarei feliz, pois "os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra razão. Somos o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio. (Eduardo Galeano)


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