Concorrência desleal - Jornal Fato
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Concorrência desleal


 

Desmentindo ter sido vítima de um amplamente alardeado episódio de discriminação num hotel de luxo em São Paulo, onde palestrava, o neurocientista norte-americano Carl Hart, negro, disse aos repórteres: "O Brasil tem sérios problemas de discriminação racial, então a indignação que sentiram em relação a mim deveriam expressar pelos próprios brasileiros. Não gastem essa energia comigo. Olhem para o lado, não há negros na plateia. Vocês deviam ter vergonha".

 

O que Hart disse não é novidade para nenhum negro brasileiro. Eu mesma me acostumei a ser uma das poucas, senão a única negra nas escolas particulares em que estudei. Já sofri discriminação e percebi olhares de estranhamento em determinados ambientes. E arrisco-me a dizer que não há negro no Brasil que não tenha passado pelas mesmas situações, o que é evidenciado pela internet, onde vemos, todos os dias, atos explícitos de racismo atingindo até os famosos, como a jornalista Maju Coutinho e a atriz Taís Araújo.

 

Mas mídias sociais, a discussão sempre acaba nas cotas, que muitos consideram culpadas pelo racismo no Brasil - como se, antes do surgimento delas, em 2004, nenhum negro brasileiro tivesse sido discriminado.  Aliás, como sói acontecer na internet, a maioria dos críticos demostra desconhecer o que critica, até mesmo o básico, ou seja, que os critérios étnicos estão incluídos no sistema de cotas social. Ou seja, as cotas são reservadas a pessoas de baixa renda e que tenham estudado em escola pública, independente de sua etnia. Dentro dessa cota social, há uma parcela de vagas destinada a negros. (E aqui aproveito para dizer aos desconfiados que nunca utilizei as cotas, até porque não teria esse direito).

 

Em vários países do mundo, minorias religiosas ou étnicas (como os aborígenes australianos), mulheres e deficientes físicos são atendidos por sistemas semelhantes. O objetivo principal não é compensar injustiças passadas, como a escravidão, mas incluir essas populações ainda vulneráveis a processos de discriminação. A convivência entre dominantes e marginalizados diminui o preconceito, acreditam os especialistas. Nos EUA, a reserva de vagas obrigatória para negros vigorou por quase vinte anos e deu tantos resultados que, mesmo depois que a obrigatoriedade foi declarada inconstitucional, muitas das mais importantes universidades americanas continuam utilizando sistemas próprios de cotas.

 

Aqui, são muitos os argumentos contrários - todos têm o direito de discordar de tudo, afinal. E há sempre um "Ah, mas eu conheço o Fulano, que é preto e pobre, e conseguiu vencer na vida sem precisar de cotas".  A questão é que o preto pobre que vence na vida é exceção, porque a concorrência é desleal. Sua condição de vida é social e economicamente desvantajosa. Claro que, ao longo dos séculos, muitos outros vencerão sozinhos. Mas, com as cotas, podemos acelerar esse processo e reduzir o desequilíbrio que ainda se verifica na sociedade brasileira, permitindo que os pretos pobres de hoje desenvolvam as mesmas competências e, aí sim, por seu merecimento, conquistem posições em que nunca antes estiveram, depois de terem sido historicamente relegados a papeis subalternos nas senzalas e cozinhas.  Então chegará o dia em que não precisaremos mais de cotas. Mas, infelizmente, pelo que a internet tem nos mostrado, parece que esse dia está bem distante.

 

 


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