Coisas do Coração e da Alma - Jornal Fato
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Coisas do Coração e da Alma


 

Vindo para casa, na quarta-feira, vencida a Ponte Municipal e no início da Rua Moreira, a escuridão da noite não me permitiu ver. Mas na quinta, anteontem, pelas 7 da manhã, de volta ao trabalho, quase chegando à histórica padaria de "Seo" Elmindo (hoje, a bem montada e qualificada Padaria TOP), pude ver que a casa ao lado do Ateneu, hoje Multivix, esquina da rua, viera abaixo, fora derrubada, as paredes todas no chão.

 

Não, não; não é crônica fazendo defesa intransigente do urbanismo e da proteção dos imóveis da cidade, coisa que sempre fiz,faço e farei. É saudade, saudade que bate. Prédios e construções, saibam os não informados, têm história, ao mesmo tempo em que servem ao comércio, à industria e no caso, à moradia. Por eles passam gente de carne e osso e, junto com a gente de coisas sólidas, passa alma, passa coração, passam histórias e passam as gentilezas deles e delas que, ao cabo e ao fim, são as "coisas" imateriais, que nos permitem viver, sonhar, recordar e ver que a vida que se vai, não se vai, pois sobrevive e permanece nas lembranças - poucas enquanto jovens, muitas e muitas enquanto vamos juntando idade e situações vividas.

 

Na casa agora no chão, correndo a década de 1970 - quase meio século -, nela morava o Sr. Lol Azeredo Moulin, o qual já não podia andar. Deu-se que um de seus genros era o Régio Antonio Moulin Batista, o qual tinha verve extraordinária que transbordava docemente nos seus escritos e vivência e, para o que interessa a esta crônica de recordações, tinha coração de ouro, que mais transbordava ainda.

 

Eram tempos de chegada da televisão a cores no Brasil, e Régio, concursado e já funcionário do Banco do Brasil (concurso em que chegou entre os primeiros e funcionário da mais alta qualidade), resolveu presentear "seu" Lol, já então preso à cadeira de rodas; o corpo, já que sua alma andava livre. E o presenteou com uma TV a cores, coisa quase inédita, então. Nesse dia, dia da instalação da TV a cores de "seo" Lol, eu estava lá. Régio abre a caixa que protegia a TV sob olhares admirados de todos. Puxa a TV e começa a preparar sua instalação para Lol. Ao lado disso, enche um copo de água, o calor era insuportável (ou seria cerveja? - minha memória diz que é água - ou seria um jarro de água com flores? -, não sei disso com certeza não!).

 

Régio coloca a vasilha com o líquido em cima da TV, espaço que lhe sobrara na pequena sala. Pelas tantas, provocado por cotovelada insana, o copo, ou jarro, vira e encharca as entranhas da TV. Adeus TV a cores, ao menos aquela, depois substituída pelo próprio Régio - mas aí já era outro dia.

 

Não preciso dizer o que aconteceu com o sentimento de todos nós, não preciso mesmo, vez que esta é crônica de recordações e de saudades imateriais, coisas do coração e da alma: coisas de Régio, que tanto conheci e de seu Lol que, conhecendo pouco, via nele, também, a vivacidade da alma e do coração, libertos, eles sim, da cadeira de rodas, já que o espírito e verve pairavam plenos e acima dela, bem mais acima.

 

Dário Lumberto Viana

 

Sim, está escrito certo, é Lumberto e não Humberto. Como está absolutamente certa a homenagem que a Câmara Municipal (através do Vereador Amaral, apoiado por todos os vereadores) lhe prestou na semana que passou, outorgando-lhe a Comenda Bernardo Horta.

 

E é certa a homenagem porque Dário é o eterno guardião das boas coisas da Biblioteca e do Arquivo da mais que centenária Loja Maçônica Fraternidade e Luz, locais onde brilhou intensamente a luz de Bernardo Horta, podendo eu dizer que muito do que se preserva dele, Bernardo, deve-se a Dário, portanto, justa a homenagem da Câmara.

 

Não fosse Dário, muita coisa da história de Cachoeiro teria se perdido por entre a papelada velha, mas muita coisa está salva e essa é a homenagem que refaço a ele, aqui nesta página.

 

Da minha parte, acresço mais uma - ainda que uma vez ou outra seja carrancudo, ou assim se faça, e isso é um elogio - Dário é das pessoas mais justas que conheço e digo isso de episódio ao mesmo tempo público e particular, ao qual me reservo o direito de só divulgá-lo junto com minhas memórias escritas que nem comecei a escrever ainda.

 

"Meu Geraldo"

 

Jardelina Albuquerque

 

O pingo de gente corria a casa toda, falava pêlos cotovelos, queria todas as atenções para si - o que não lhe era negado - e já era dona de tudo. No seu vocabulário a palavra mais importante era "meu".

 

Não é o seu pai... É meu vovô... Minha vovó... Meu dindinho... Meu titio... Meu carro... Minha casa... Enfim, aquela fase de tudo meu.

 

Tão pequenina e já cheia de vontades e mil interesses. Com menos de dois anos  pegou a mania de medir tudo. Arrastava a fita métrica para todo lado e tudo media "centintos". Até o querer bem começou a valer pêlos centímetros. Ela não gostava até no coração ou no céu como as crianças costumam dizer. Ela começou a gostar "muito centintos".

 

Tentamos inutilmente que se interessasse por desenhos animados, na frustrada tentativa de alguns minutos de descanso na quebradeira dos brinquedos e na exigência da presença de quantos adultos estivessem na casa. O pato Donald mordia a menina sem parar, outro personagem falava que a mãe era feia. Isso ela garantia. Na verdade só corria para a televisão quando ouvia a voz do João Gilberto acompanhado pela orquestra sinfônica cantando a propaganda de uma cerveja. Apaixonou-se pelo João Gilberto e não conseguia entender porque ele ia embora.

 

O vocabulário cresce com palavras que custamos a decifrar. Quero um "caro"...  Já sei comer "soza"... A "gala" bicou o pintinho... Depois de muito esforço conseguiu explicar: eu já sou grande! Carinho, sozinha, galinha... Diminutivos!

 

Tudo ainda é seu. O mundo lhe pertence. Arranjou uma brincadeira nova que deixa os adultos exaustos. Arremete de varanda abaixo tudo que lhe cai às mãos e quando o jardim está coalhado de brinquedos e não lhe resta nada ao alcance, os pais, avós e tios que subam e desçam para recolher a numerosa tralha. E recomeça.

 

O avô resolve conversar a sério com a pequena e depois de usar os argumentos mais convincentes: vovô é velhinho, está cansado... Ela responde: tá certo vovô. E sai correndo para a varanda e joga tudo mais uma vez sobre a grama. Quando sente que todos estão com a paciência esgotada depois da longa conversa e do acordo feito, põe as mãos na cintura e grita com toda força: "meu Zelaaaldo!" E o velho jardineiro a quem chamamos respeitosamente de Seu Geraldo, corre para atender o chamado da garotinha que dele se apropriou. (Esta crônica da Jardelina Albuquerque é de 02.12.1997 - Bem-vinda ao mundo aberto das letras, Jardelina - ótimo e inspirado texto).


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