A outra - Jornal Fato
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A outra


 

Dois trechos de diferentes artigos da Fernanda Torres, no mesmo livro, chamam a minha atenção.  Num deles a cronista diz que, em oposição aos pais, que raramente desvelam algo de sua vida emocional, as mães são "desabridas". Em outro, ela conta como se surpreendeu grandemente ao assistir à mãe, a também atriz Fernanda Montenegro, sozinha num palco interpretando Simone de Beauvoir. Comovida, chorou ao descobrir em sua mãe uma mulher que nunca imaginara existir.

Fiquei pensando se não há, entre os dois artigos, uma contradição. E concluí que há mesmo, sem que tenha nada de mais nisso, pois as mães trazem em si um paradoxo: ao mesmo tempo em que se doampor inteiro aos filhos emisturam suas vidas às deles quase que formando juntos uma nova entidade, um novo ser, na verdade elas nunca se revelam totalmente a eles. Somos especialistas em disfarce.

Aos nossos filhos tentamos mostrar o que consideramos ser o melhor em nós. Mães precisam proteger suas crias da perversidade domundo - e então vestimos nossa couraça blindada para lhes oferecer toda segurança que estiver ao nosso alcance. Precisamos, também, ensinar-lhes a transpor as barreiras que a vida nos apresenta desde cedo - e aí colocamos nossa máscara de mulher forte, determinada, vitoriosa, a que sabe todos os caminhos e todas as fórmulas do sucesso.

E então vamos fingindo pela vida, tentando transferir aos filhos, comnosso próprio exemplo, tudo aquilo que, julgamos, eles necessitam. E desta forma nos transformamos em provedoras de alimento e afeto, sabedoras de todas as ciências do cuidado, incansáveis trabalhadoras de múltiplas jornadas, mesmo assim serenas e bem-humoradas, aquelas que nada temem, nunca duvidam, tudo conhecem e dominam. Heroínas invencíveis.E virtuosas.

Mas é claro que um dia a verdade aparece, seja num teatro de verdade, como no caso das Fernandas, ou neste intricado teatro que todas nós inventamos, onde somos autoras,personagens, diretoras e atrizes, num protagonismo que julgamos altamente convincente, mas do qual a sensibilidade dos filhos vai aprendendo a suspeitar.

E chegará o momento em queelesencontrarão em nós não a mãe, mas a mulher desconhecida, aquela com a alma em sobressalto, atônita diante das decisões a tomar todos os dias,assombrada pela possibilidade do erro. A mulher de tantas dores vividas e guardadas, algumas ainda não cicatrizadas. A mulher que deseja, que sonha e se frustra. A prostituta, a indecente,a egoísta, a derrotada. A outra.

A descobertapode até ser chocante para os filhos, mas, para nós, costuma ser libertadora. Vejo muitas mulheres de novo tomarem posse de si quando os filhos começam a se tornar adultos. Não significa que seremos felizes; significa apenas que poderemos, com o sentimento do dever cumprido, voltar a ser o que realmente somos, sem máscara, fingimento, disfarce.

E com uma vantagem:o aprendizado que tantos anos de dissimulação nos proporcionaram. Este, talvez, seja o grande ganho da maternidade. 


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