A cheia do Itapemirim - Jornal Fato
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A cheia do Itapemirim

Perdemos um pouco a cada dia. Numa cheia do Itapemirim perdemos todos


Foto: Ronaldo Santos

Perdemos um pouco a cada dia. Numa cheia do Itapemirim perdemos todos. Escolhi um dos lados do rio para morar. No momento da cheia, estava em São Paulo com Bernardo (dois anos de vida). No domingo, um dia depois, voltei ao apartamento, retirei as coisas do refrigerador: algumas doadas, outras perdidas, devido à falta de energia. Em volta do prédio o caos, tristeza e medo. Uma semana depois, gradativamente, as coisas retornam aos seus lugares. Caminho ao lado do rio: ele sereno; eu angustiado. Vou de encontro à Banca da Tereza, no Edifício Primus, o epicentro da cheia do rio, bem no centro de Cachoeiro. Ela conta os momentos críticos. Em seus anos de convivência com o rio, nada tão intenso. Fala das perdas. Perdi todos os livros, inclusive o que separei para você: perdi os livros... Digo: não, você não perdeu. Eu perdi os livros. Eles já me pertenciam. Falava das perdas com um sorriso nos lábios, com alegria de poder recomeçar. Demonstrava confiança. Algo que fui percebendo no semblante das pessoas, no retorno da caminhada.  No retorno para o apartamento, pensei nas perdas. Mais ainda na "Arte de perder". Sim, se perdemos sempre alguma coisa na vida, como lidar? Durante o momento crítico da cheia do rio, perdi a chance de escrever os versos do "Lamento do rio", uma verdade da poetisa cachoeirense Scheilla Lobato. Perdi a chance de contar a agonia de um rio por trazer tantas destruições por ter sido agredido e tomado em seu leito. Gabeira tem razão quando escreve que não podemos perder a chance de perguntar se as cidades brasileiras estão preparadas para lidarem com os eventos extremos. Pois, as chuvas mudam de intensidade e caem em ruas e avenidas cada vez mais alteradas pelas mãos humanas.

Com a cheia do Itapemirim, entre as perdas, lembrei-me do Carlos e da Márcia, um amor impossível de se concretizar. Ele encontrava-se em momento crítico. Na porta do Centro Cirúrgico, com parada das batidas do coração, em consequência de um Aneurisma Dissecante de Aorta Torácica. Enfermeiros e médicos corriam para salvá-lo. Apresentava-se sem movimentos de braços e pernas, também, sem nenhum reflexo. Apenas os pensamentos e lembranças. Algo confuso, não sabia distinguir se um sonho ou pesadelo. Apenas pensava: Perdi a chance... A chance de dizer a Márcia: o quanto sofrera com sua ausência. Mas: "Alea Jacta Est." Isto, pensaria como Julio César, o imperador romano: "A sorte está lançada." Pensaria como César: "Vim, vi e venci." Mesmo sabendo que a poesia de Vinicius de Moraes, Meu Tempo, era a mais apropriada para os seus instantes: "Minha sorte está lançada/ Eu sou, eu sou estrada/ Eu sou, eu sou levada/ Eu sou, eu sou partida/ Contra o grande nada - lá vou eu! [...]" Sentia-se cansado. Amigos aposentavam ou morriam. A cirurgia varava a noite. Seu grande medo: Ser esquecido. Permaneceu em sonhos, sob efeito anestésico. Pensava em Márcia. Voltou à poesia, Vinicius completava: "[...] Entre os ecos do infinito/ Eu grito, eu mato a solidão/ Eu sou meu tempo, eu vou/ A ferro e fogo, eu corro/ Eu vou, eu canto e grito: amor!/ Eu vou, eu vou, eu canto e grito: amor!"

 

Sergio Damião Santana Moraes


Sergio Damião Médico e cronista

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