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Preciso falar disso

Eu devia ter uns 12 anos quando, na noite de natal, ganhei de presente em uma "brincadeira"


Eu devia ter uns 12 anos quando, na noite de natal, ganhei de presente em uma "brincadeira" de família uma lâmina de barbear para retirar os pelos que começavam a crescer. E lembrando de uma coisa ali e outra ali é que a gente se dá conta no quanto é tóxico e machista o ambiente que a gente cresce e nem se dá conta. Esse fato, bastante antigo, voltou pra mim quando, conversando em um café, um amigo quase enfartou vociferando o quanto o movimento feminista é podre porque as mulheres deixam "o suvaco cabeludo". A limitação desse pensamento em tempos globalizados é tão bizarra quanto alguém que ainda defende o desgoverno Bolsonaro. Atualmente alguns homens optam pela retirada dos pelos. Por esporte, por vaidade ou por alegarem ser mais higiênico, eles, assim como elas, têm a liberdade de escolha. Sim, porque, ao contrário do que pensam e dizem, ser feminista não é ter pelos, mas ter liberdade de escolher tê-los. Entende a diferença? Se eu estou bem de sobrancelhas enormes e axilas felpudas como a grande maioria dos homens, qual o motivo de tanta guerra contra isso?

Entre cabelos, músculos e mortes, o debate é mais amplo, mas poucos tem coragem para olhar para o lado e ver que, se você não precisa de ajuda e está muito bem obrigada, bem ali ao lado tem mulher apanhando, sendo estuprada, enlouquecendo e sendo morta. Aí você dá de cara com um textão de uma mulher que reclama do feminismo porque tem o direito de pedir ajuda para abrir um vidro de azeitona. Como alguém pode estreitar tanto a essência de um movimento tão nosso, tão lindo, tão do bem? Falar o que para ela? Obviamente qualquer pessoa pode pedir ajuda para qualquer coisa. Não somos ilhas. O problema nunca foi nem nunca será um vidro de azeitona. Mesmo porque uma faquinha de ponta fina na borda da tampa retira o ar e qualquer um é capaz de abrir.

"Cheguei longe sem ser feminista". "Sou uma mulher machista". "Nunca precisei disso". "Coisa de mulher mal-amada". Se você já falou ou pensou alguma dessas coisas, não sei se sinto pena, raiva ou raiva da sua ignorância e do seu egoísmo. Se você foi longe, lembre-se das mulheres que poderiam ter ido tanto ou mais longe que você, mas no meio do caminho foram exterminadas. Se você se intitula machista lembre-se das irmãs machucadas no corpo e na alma pela violência institucionalizada que você, por algum motivo errado, deve achar normal. Se você nunca precisou "disso", de uma mulher que te acolhesse, que te representasse ou que te defendesse, dá para voltar lá atrás e lembrar da sua avó, mãe ou tia? Ninguém com uma história triste? Você não engravidou ou não conhece nenhuma garota que tenha ficado grávida solteira ouvindo as mais diversas recriminações enquanto a vida do pai da criança seguiu seu rumo? E, na moral, coisa de mulher mal-amada é a coisa mais tosca que uma mulher pode falar da outra. Cada uma tem uma história. Pode ter havido desamor em algum momento na vida de qualquer uma de nós. Pense primeiro. Fale depois. Ou nem fale, escreva ou debata. Se não for seu lugar de fala, se não for acrescentar e contribuir, recue.

Ser feminista independe de ser cabeluda, com pouca ou muita roupa, casada, solteira, cristã, ateia, agnóstica, dona de casa, empresária, professora, desempregada, estudante, influencer, sarada ou não. Não é classe, cor, posição partidária ou orientação sexual. Não permitam que conceitos pré-concebidos contaminem a dimensão disso. Só queremos igualdade. Sem o feminismo você não votaria, não seria votada, não teria acesso ao ensino superior, não tiraria carteira de motorista. A lista de conquistas é imensa. A lista do que tem para ser conquistado é maior ainda. Então não venha sabotar a luta que pretende que tenhamos o direito de dizer não sem sermos mortas. Queremos viver, e queremos que vivam. Nenhuma a menos. Todas por cada uma. Sem a rivalidade que a sociedade teima em alimentar.


Paula Garruth Colunista

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