Reflexões de um mortal - Jornal Fato
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Reflexões de um mortal


Olho o derradeiro leito vazio, esperando seu novo hóspede, que já chega dormindo, levado pelas mãos de tantos amigos. Leito de hálito úmido e escuro, profundo, silencioso, à sombra de uma árvore, inaugurado pelo pai, também Pedro.

Do lado de fora, um saco plástico, preto, fechado. O que conteria? Descubro, na pergunta do coveiro:

 

- Onde o senhor quer que a gente coloque os ossos?

Era o que restava de meu pai, e do cunhado Silas Primo. Era o que restava de Serginho, ali descansando há três anos. Mas era ele, na minha lembrança cantando "Te voglio bene"?, para ciúmes do Pepino di Capri. Ã?, estava bem diferente...

Pedro sendo descido e me pergunto: como é que naquele buraco estreito cabe tanta bondade e, com a mesma indiferença, acolhia toda a prestimosidade de meus irmãos? Ali caberia, também, em dia qualquer, a minha vaidade (será que ainda tenho alguma?), minha experiência de irmão mais velho? Por certo, mormente sabendo que a maior parte delas eu já utilizei. Ã?, quando mais jovem. Hoje sinto que estou menor, mais vazio de idéias, esbanjadas nesse ofício gracioso de juntar palavras para contar histórias e traduzir sentimentos. Histórias que vou sepultando em tantos livros, ciosamente ignorados pela maioria dos conhecidos. Alguns nem aprenderam a gostar, coitados.

E, pensando bem, o livro é, mal comparando, uma espécie de túmulo: fechado, tem a boa aparência de uma capa e não adivinhamos as vidas e as idéias que foram ali trancadas à força de frases, alegres ou tristes, pontuações, finais ou temporárias. E muitos temem abrir um livro, que lhes revelará o tamanho da sua ignorância. Por isso preferem continuar ignorando a verdade, a beleza, as idéias grandes.

Somente quando abrimos o livro e vemos a realidade ou a fantasia descritas. Como no túmulo, descobrimos a verdade da vida, o desmentido de tantas idéias e esperanças, de tantos enganos, o fim de todas as fantasias que nos enganaram vida inteira. Ã? o início do Conhecimento.

Desço a ladeira do velho cemitério após fechar o livro da vida de Pedrinho, justo quando o sol permitia a noite fechar-se sobre os que dormiam nos túmulos e os que estávamos acordados entre eles, aguardando a sua hora.

Sinto que uma parcela de mim já está sob a lápide antiga, que cumpre renovar. A aparência deve ser bonita, se o interior é importante.

 

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