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Viessem-me às mãos legitimamente, leria todas as cartas particulares


Viessem-me às mãos legitimamente, leria todas as cartas particulares. Abandonaria logo as com carimbo oficial; essas sempre são - ou quase - mentirosas, mais que mentirosas, procuram intencionalmente desviar a verdade. Deixemo-las de lado e vamos às cartas particulares. Delas, prefiro as cartas femininas e dessas, cartas femininas a personagens femininas. É que cartas femininas a personagens femininas, bem mais que as outras, revelam ao homem mistérios inalcançáveis a ele. É dizer, junta-se na mesma leitura a verdade e a intimidade, isentas da mentira pública e a possibilidade de o homem ver seu lado contrário (ou complemento, melhor dizendo) - a mulher.

E quando a mulher é alguém como Clarice Lispector, cuja correspondência quase toda familiar é dirigida às mulheres amigas e da família (agora, 2002, publicadas pela Ed. Rocco ("Correspondências", 331 páginas), posso dizer que é como chegar ao Paraíso.

Clarice Lispector é a autentica mulher brasileira, nascida em 1920, Ucrânia, que veio para nossa terra aos dois meses de idade, fugindo com os pais do governo que caia e do regime russo que se implantava.

Mas nada disso interessa aqui. Interessa menos a mim. Proponho aos leitores ler a alma atormentada dela - por si mesma, Clarice, reconhecida como atormentada. E onde melhor reconhecê-la, senão nas suas cartas dirigidas a outras mulheres, irmãs e amigas? (Esse meu texto foi escrito em 2002 - manuscrito, quando lançado o livro de correspondências de Clarice, e que ficou perdido dentro do livro que adquiri nesse mesmo ano).

Do livro e de uma carta dela, de 06/01/1948, à irmã Tânia, retirei:

- "Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. É somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias... há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo... Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas... Cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força... Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Minha irmãzinha, ouça o meu conselho, ouça o meu pedido: respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você acha que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver... Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma".

 

Falando de Lixo

Em Cachoeiro e em todo lugar, fala-se muito no que será feito "quando eu for eleito". E quando chega a hora, fala-se nada, melhor, não se faz nada. Claro que não é com todos - de vez em quando, uns acertam. Cidade que tem acertado muito sobre o que escrevo é a vizinha Atílio Vivacqua, que se destaca como município cuja administração está dando especial apoio aos recicladores de lixo (antigamente cognominados catadores) e à coleta do lixo. Em Atílio Vivacqua (já falei aqui, inclusive acompanhado de fotos; fotos falam mais que palavras) a prefeitura disponibilizou amplíssimo galpão para que recicladores pudessem preparar e separar o lixo gerado na cidade. Se ainda não foi premiada essa experiência governo/cidadão, com certeza será. Se não foi, ainda, estão atrasados os que premiam.

Enquanto isso, em nossa Cachoeiro, antes da eleição de 2016, o governo atual espalhou lindo e colorido caderno (registrado na Justiça Eleitoral) dizendo de suas metas no meio-ambiente (para quando estivesse governando). Diz o programa que iriam "aperfeiçoar a coleta seletiva na cidade" (pág. 12 do "Plano de Governo" - quinto item). Lá estão outros compromissos que não cabem aqui, neste momento.

O governo cachoeirense escreveu o "aperfeiçoar a coleta seletiva na cidade", como obrigação. Passados 32 meses, o resultado é nulo, haja vista, inclusive, o abandono da ASCOMIRIM, única associação de recicladores locais, cuja sede foi incendiada em fins de março, ficando imprestável para a reciclagem. O incêndio comemorou 5 meses no fim de agosto. E pior, deixou à margem 16 famílias da sociedade mais pobre de Cachoeiro, que acreditaram numa mentira, numa brincadeira, num trote, numa conversa fiada... e paro por aqui para poder administrar meu desconforto ante a incompetência governamental.

Fora o fato de, no inicio do governo, terem dito que recolheram 43 toneladas de lixo tal, para agora limitar-se, em três dias, a recolher pilhas e baterias na praça, apenas 489 k. Seria para rir, não fosse pra chorar.

Vejo-me na situação desagradável de escrever crônica desse tipo, quando gostaria de escrever sobre coisas mais agradáveis - e até tem e sobre elas falarei à frente.

 

Histórias de Coisas Simples

Tem a história do passarinho que tentava apagar o incêndio na floresta. Ela é, mais ou menos, assim: Em certa ocasião houve um grande incêndio na floresta. Os animais que puderam, fugiram para longe, ficando a salvo. Outros, cercados pelo fogo, morreram. Um passarinho, no entanto, ia e voltava - da floresta em chamas ao rio, do rio à floresta em chamas - transportando em cada viagem, no seu bico, um cadinho de água. E despejava a pequena porção sobre a floresta.

Continuou assim, não sei até quando. Na história que contaram, não me deram resposta se a floresta queimou toda, ou se salvou. O que lembro é que perguntaram ao passarinho porque ele insistia em levar no bico aquela pouca água, que sozinha não apagaria incêndio algum. E ele respondeu, num meio enigma de conclusão fácil: - "Eu faço a minha parte. Se cada um fizer a sua ...".

Não hesito em dizer que Aguimar Paixão é o passarinho da história. Passa horas arrancando do rio as centenas de pneus que alguns teimam em jogar no Itapemirim. Dirão que pouco importa essa faina repetitiva, esse trabalho até então desconhecido que Aguimar vem fazendo nos últimos tempos. Mas ele responde: "Dou minha pequena colaboração e espero que todos façam o mesmo."

Eu, por mim e por outros que vivem de observar as pequenas coisas da vida, tais como o passarinho que apaga o incêndio ou o mecânico que livra o Itapemirim de alguma poluição, vou logo dizendo que são essas atividades aparentemente quixotescas que se reúnem e formam a história bonita da cidade. Que criam muito mais que uma cultura, criam a Civilização. Acontecimentos simples e concretos e, bem por isso, fortalecedores do caráter da comunidade.

Já pensaram se fossem milhares os passarinhos a levar água à floresta em chamas. Ou, fixando-se na história real, tivéssemos um batalhão de Aguimar a patrulhar os rios. E que Aguimar ... Bem, basta por aqui, o leitor é inteligente e sabe exatamente o que estou querendo dizer. Que cada um assuma pequena parcela de responsabilidade, coisas comuns ao nosso alcance. Mas que insistimos em não assumir, conduzidos pelo desinteresse pela coisa pública, como se a responsabilidade não fosse nossa.

Aguimar está a nos mostrar, tal qual o passarinho, ao apagar o incêndio na floresta, que essa responsabilidade pode ser assumida. Ele está fazendo a sua parte. Se os outros fizerem a sua ...

(Texto publicado em fevereiro de 2005, no jornal FOLHA do ESPÍRITO SANTO - quase 15 anos depois, Aguimar (ou Agmar) continua na sua obra que honra nossa cidade).


Higner Mansur Advogado, guardião da cultura cachoeirense e, atamente, vereador

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