"A sociedade precisa rever seus conceitos" - Jornal Fato
Entrevista

"A sociedade precisa rever seus conceitos"


por Dayane Hemerly - [email protected]

 

Ricardo Ferraz é um cartunista renomado de Cachoeiro do Itapemirim. Tem suas obras espalhadas nos jornais e revistas de todo o Brasil, além de outros países da América do Sul, África, Europa, Canadá, Estados Unidos, inclusive na ONU. 

 

Ele aponta, com ironia, o cotidiano de pessoas com deficiência em suas obras, as dificuldades e preconceitos que elas enfrentam no dia a dia. 

 

O  cartunista divide seu tempo entre os desenhos e atividades culturais, conquistando assim, sua integração social.

 

Confira a entrevista

 

 

 

 

Encontrei na arte do cartum minha "arma" para denunciar e sensibilizar a sociedade.

 

 

 

Jornal Fato - Qual a dificuldade das pessoas com deficiência em Cachoeiro, em questão de acessibilidade?

 

Ricardo Ferraz - Genericamente falando, em primeiro lugar, deparamo-nos com a nossa própria limitação, pois a sociedade ainda preserva o "conceito do homem padrão" e não o "conceito do desenho universal" que contempla a diversidade humana. As dificuldades dependem de cada deficiência, grau de deficiência, leve, média ou severa! As dificuldades de um cego, de um surdo não é a mesma de um "cadeirante", e outras áreas de deficiência, posição social e cultural, geografia do bairro, da cidade, ambiental, arquitetônica ou da própria casa onde reside entre uma série de fatores! Particularmente em Cachoeiro, o maior problema começa pela topografia acidentada de uma cidade que não foi planejada, calçadas estreitas, esburacadas que dificultam o acesso até para pessoas sem deficiência, carros estacionados irregularmente... UFA! Resumo numa cidade caótica e complexa que desafia qualquer urbanista! O ponto positivo é que Cachoeiro foi pioneira no transporte solidário, o "IR e VIR", uma parceria do poder público e a empresa concessionária de transporte urbano. Este transporte que atende apenas os usuários de cadeira de rodas transporta o usuário de sua residência ao destino desejado, para o trabalho, lazer, educação, centro de reabilitação etc. com agendamento prévio. São três vans adaptadas para tais tarefas, mas ainda insuficiente para atender a grande demanda. Os ônibus convencionais com elevadores são poucos utilizados porque grande parte dos usuários prefere o "Ir e Vir" devido à facilidade de locomoção.

 

O mercado de trabalho acolhe bem as pessoas com deficiência?

 

R- A Lei de Cotas 8.213, de 24 de julho de 1991, obriga a empresa a partir de 100 funcionários a empregar de 2% a 3% pessoa com algum tipo de deficiência. A competência é do ministério do trabalho fiscalizar e até multar o não cumprimento da Lei. O trabalho decente com dignidade e sua inclusão vai depender de cada empresa com visão de responsabilidade social. Não temos um diagnóstico e transparência se os empregadores cumprem a legislação. É preciso a união dos setores competentes, como Ministério Público, do Trabalho, sociedade organizada, classe empresarial, Sistema "S", SINE e demais para que se crie um "fórum permanente" no aprimoramento e quebra de paradigmas e mitos em tempos de preconceito ainda arraigado na cultura brasileira!

 

Como surgiu a ideia de abordar as situações cotidianas de deficientes em suas obras?

 

R- Em 1981, Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD) instituído pela ONU, fui o principal articulador do Movimento em Cachoeiro e tinha como tema central "Participação Plena e Igualdade de Direitos", mas na realidade não passava de uma utopia devido ao extremo da segregação e invisibilidade dessas pessoas perante a cultura da sociedade. Perplexo com o absurdo ao deparar-me com jovens até amarrados em suas camas, impotente diante daquele quadro dantesco, encontrei na arte do cartum minha "arma" para denunciar e sensibilizar a sociedade. Encontrei uma grande lacuna nas artes gráficas. Quando via um cartum sobre deficientes, era recheado de preconceitos e as conhecidas piadas de salão, como aquelas: "você conhece a piada do ceguinho? Do aleijadinho? Do mudinho... E muitas gargalhadas que fortalecia o preconceito. Como já dizia o saudoso jornalista Paulo Francis, "um cartum vale milhares de palavras para um povo a quem se nega as primeiras letras". E, acreditando na força da imagem, comecei abordar as barreiras físicas e humanas enfrentadas pelas pessoas com deficiência no seu dia a dia e seus conflitos com a sociedade. Queria denunciar essas barreiras, mas sem dramalhão mexicano, e encontrei no humor uma forma de falar sério e quis mostrar que a deficiência não estava nas limitações físicas e sim na sociedade, no preconceito, na ignorância. Fiz "piada de brasileiro" contada por português, mas com bastante critério para não ficar vulgar. Não tive dificuldade de criar os cartuns, apenas retratava com fidelidade e até o humor não era minha criação, já estava "embutido" na desinformação da comunidade por não saber lidar com o assunto nas abordagens, transformavam em situações constrangedoras e humilhantes.

 

Você percebe algum avanço na sociedade, em questão de preconceito e aceitação? Ou as pessoas ainda são intolerantes às pessoas com deficiência?

 

R- Trinta e cinco anos depois, refletindo sobre a realidade descrita anteriormente, houve mudanças significativas. Primeiro, foi à missão de "arrancar" aquelas pessoas de suas "jaulas", "prisões" e falar: você é gente, tem direito e deveres! Entre outros valores. Depois de várias reuniões com aquelas pessoas, na maioria sem noção do que se tratava, criamos um grupo que deu origem à fundação de uma associação, com estatuto registrado, etc. Como a maioria não tinha escolaridade ou condições físicas para executar algumas tarefas, tive que atuar como o "faz tudo", dei a minha vida, me entreguei de corpo e alma e à paixão pela causa, me tornei um "Quixote". Participei de vários eventos na formação da organização no Estado do ES e em nível nacional. Viajei muito, conheci muitas lideranças, foi uma escola de vida para mim e, esse aprendizado colocava em prática na minha cidade. Acho que a conquista maior foi quebrar a cultura do in-válido para a pessoa humana, com deficiência, que aprendeu na luta que tem direitos e deveres, limites e possibilidades. Surgiram novas lideranças e aos poucos fui deixando o movimento andar com suas próprias pernas. Mesmo com a omissão dos políticos na época, hoje podemos contabilizar muitas conquistas e muitas barreiras vencidas, a mesma realidade de algumas regiões brasileiras. Entre muitas conquistas, cito as emblemáticas, conquistamos nossos primeiros Direitos na Constituição de 1988, a ratificação na Convenção da ONU, como o lema, "Nada sobre nós, sem nós" e a mais recente "Lei Brasileira de Inclusão" em vigor em 3 de janeiro deste ano! É importante frisar que todas estas conquistas não foram um presente e nem "milagres", mas graças à organização e a consciência política dos militantes do Movimento das pessoas com deficiência. Temos as melhores leis do mundo, agora cabe a cada cidadão, cidadãos lutem para que as leis saiam do papel, cabem às instituições e toda sociedade cumprir o seu papel. Sabemos que o Brasil é um país que tem a "cultura" de não respeitar as leis, além da crise de valores éticos de setores da sociedade e das instituições, a intolerância em todos os níveis que geram o ódio e o preconceito, ainda é preciso continuar sonhando com uma sociedade mais digna, fraterna, solidária... Utopia? Não! Só depende de VOCÊ!

 

Como seus cartuns contribuem para a inclusão das pessoas com deficiência?

 

R- Na década de 80, a proposta era denunciar e ao mesmo tempo sensibilizar a sociedade sobre a nossa luta, que, na época, era pela reintegração social e agora é pela Inclusão Social. Além dos cartuns que comecei a publicar em jornais da cidade e em nível nacional em informativos de várias associações. Também levei o tema para uma exposição itinerante, com o título, "Visão e Revisão. Conceito e Pré-Conceito", que percorri o Brasil e exterior desde 1981. Fui o primeiro artista a levar esse tema para as galerias de arte e espaços alternativos e, onde passei, deixei a semente da consciência e da reflexão da sociedade. A exposição foi vista por milhares de pessoas e, no livro de assinaturas, as pessoas deixavam mensagens de carinho pela causa. As escolas levavam seus alunos e eles deixavam suas impressões numa pequena urna de papelão, o resultado era sempre positivo. Essa exposição contribuiu positivamente na quebra de paradigmas numa época que não se falava em inclusão e outros valores. A arte foi fundamental nesse processo. Tocar na ferida da sociedade, mostrando a realidade desses milhões de brasileiros excluídos. Qual é a função principal da Associação Capixaba de Pessoas com Deficiência? Quando a ACPD- Cachoeiro foi criada em 1981, tinha como objetivo principal, lutar pelos Direitos dessas pessoas, numa época que esta palavra era inexistente devido à cultura da exclusão social; zelar pela dignidade e os valores humanos; por uma "Participação Plena e Igualdade de Direitos"... Direitos que mais tarde conquistamos através das leis acima citado, por uma consciência crítica quebrando a cultura do assistencialismo, a cultura ditada pela sociedade de "VOCÊ NÃO PODE.."! Entre outros objetivos sociais. Infelizmente essa entidade que marcou uma história de luta não existe mais devida á falta de empenho, garra entre outros fatores daqueles que não levaram á frente esta luta, lamentável! Atualmente existe o "Conselho Municipal das Pessoas com Deficiência" composta por membros representantes do poder público e entidades representativas da cidade, com os mesmos objetivos, com sede na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social-SEMDES.

 

Seus livros abordam temas além da deficiência?

 

R- Além da exposição itinerante, tive a ideia de lançar um livro com mesmo título da exposição, uma coletânea dos mesmos cartuns da exposição. Lancei a 1ª edição no ano 2000, durante a realização do "XIX Congresso Mundial da Reabilitação Internacional", realizado no Rio de Janeiro. E, graças à representatividade de congressistas do mundo inteiro, tive a oportunidade de divulgar o livro pelos cinco continentes representados. Os desenhos estão também na internet e são bastante utilizados em palestras por profissionais de diversas áreas, em livros didáticos das principais editoras do país, cartilhas educativas, jornais e até utilizado em palestras das agências da ONU pelo mundo. O desenho também deu origem à primeira vinheta da Rede Globo ao abordar a acessibilidade, em 2001, entre outros. O livro está na 3ª edição. Com essa última edição encerro um ciclo de vinte anos, não pretendo mais abordar a "problemática" e sim a "solucionática". Há bastante tempo mudei meu foco, abordo a inclusão, o convívio com as diferenças, acompanhando as mudanças e os novos paradigmas. Lancei meu segundo livro sobre o bullying, cujo título é "Bullying. Vamos combater Esse Mal pela Raiz?" Livro que desmistifica de forma didática e ilustrado ajuda a compreender a complexidade dessa violência que atormenta aos pais e filhos, um retrocesso em tempos de inclusão social e "Educação Inclusiva" que tem o objetivo, "conviver com as diferenças"! O livro é o resultado de dois anos de pesquisa, numa época em que quase não se falava sobre o tema. A proposta é provocar reflexões da sociedade, escolas, gestores, instituições e resgatar os valores da família.

 

O que ainda precisa ser melhorado na sociedade para que as pessoas com deficiência tenham uma vida melhor?

 

R- Resumo em uma pala: RESPEITO!! Respeito aos Direitos Humanos: O Direito de SER HUMANO! A sociedade quando prioriza o homem e seus valores éticos e morais, contribuem positivamente para uma cultura Inclusiva no convívio harmônico com a diversidade humana e uma cultura de paz! É preciso que a sociedade reveja, reflita sobre seus conceitos e pré-conceito! Educar nosso olhar, falar, ouvir e agir é preciso, pois os conceitos mudam com o passar do tempo e é preciso estar atento aos sinais de mudanças de cultura, paradigmas... Por falar em conceito é preciso uma nova cultura sobre o tema Acessibilidade: "Conceito do Desenho Universal", este contempla á diversidade humana! Não falamos mais em "deficiência", falamos de cidadania plena: EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO...!!

 

 

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