Violência secular - Jornal Fato
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Violência secular


Aqueles olhos escandalosamente verdes já tinham contemplado o céu e o inferno. Este último por um longo período de sua adolescência e juventude, vivida no interior, no cabo da enxada e outras lidas da roça. De sol a sol, desde a primeira infância.

 

A pele morena e enrugada ainda exibe belos traços. A senhora centenária é uma bela mulher e nada revela o longo calvário percorrido por ela. Já alterna momentos de lucidez e delírios, mas não reclama. Gosta das longas conversas e de relembrar os bons tempos que desfrutou, embora tardiamente. Dos maus, parecem trancados a sete chaves em algum lugar, para que não saiam nunca mais. O que se sabe do seu passado é por terceiros.

 

Não há amargura em suas palavras. A doçura a acompanhou pela vida. É sobrevivente de tempos muito difíceis. Conta-se que era menina graciosa, de longos cabelos negros e encaracolados. Parecia feita a pincel, como diziam, tamanha a harmonia e perfeição de seus traços.

 

Órfã desde a infância, foi morar na casa de parentes, quando um pretendente encantou-se por ela, no frescor de seus 16 anos. Era a esperança de ter sua própria casa e começar uma nova história. Casamento marcado, vestido de noiva comprado, o minúsculo sapato branco para os pés delicados e a grinalda acompanhando o conjunto, tudo era guardado como um tesouro até a tão esperada data, que estava muito próxima. Aquele pacote carregava todos os sonhos do mundo. Era o passaporte para a esperança de novos dias e uma vida melhor.

 

Numa noite como outra qualquer, seu quarto simples e sem conforto é invadido pelo dono da casa. De navalha em punho, ele a tomou a força e a noivinha viu seus mais belos planos esvaindo-se no sangramento abundante provocado pela brutalidade do ato.

 

O dia amanheceu sem cor. Os lindos olhos verdes só conseguiam enxergar o cinza. Desencanto e desilusão a acompanharam durante todo o dia. A dor física e emocional e o sangramento não a deixavam esquecer o maior pesadelo de sua vida.

 

A dona da casa estava mais atenciosa que de costume naquela manhã. Parecia penalizada, mas não proferiu palavra. Não era necessário. Sentia-se a força do silêncio. Tentou poupá-la dos serviços, mas seu algoz foi impiedoso. O trabalho não podia parar.

 

O noivo foi informado pela menina, reagiu mal, fez considerações, mas como macho foi tomar satisfação. Apanhou tanto e foi ameaçado de morte que preferiu desistir. Foi avisado que se resistisse, a menina pagaria preço maior. Não restou outra opção senão deixar tudo para trás.

 

Por vergonha de ter se acovardado, por medo de casar com uma "mulher falada" e por não achar mais ambiente por ali, onde também fizeram belos planos de viver ao lado de sua noiva. Só depois tomou conhecimento que o malfeitor tinha o corpo fechado. Diziam que conseguia tudo que queria, por bem e por mal.

 

Se era notória e pública tal informação, a menina, em sua inocência, não tinha conhecimento dela e nem havia percebido o desejo animal daquele que roubou seus sonhos de forma tão violenta. A esposa tocou a vida como se nada tivesse acontecido. Também era vítima da violência doméstica que rondava aquela casa desde sempre.

 

Algum tempo depois a barriga da menina feita mulher à sua revelia começou a crescer. A gravidez se repetiu mais uma vez. A esposa, cabisbaixa, emprestou solidariedade nos pequenos cuidados, sempre às escondidas do marido. Quando as crianças nasceram, foram registradas como se fossem da esposa e não se tocou mais no assunto.

 

O que mais se tem a dizer? Que infelizmente essa história é baseada em fatos reais.


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