Sobre sincerídio e carência de valores e princípios - Jornal Fato
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Sobre sincerídio e carência de valores e princípios


Carência talvez seja a palavra dos dias atuais. Não apenas a carência afetiva, como costumamos ouvir na maioria das vezes, mas carência de princípios e valores.

 

E é essa carência, superabundante, diga-se de passagem, que interfere nas relações, ao ponto de contaminá-las de forma mortal. É de tirar as esperanças de que ainda haja solução numa sociedade em que são priorizados acordos nada ortodoxos, protegidos por parceiros omissos de todas as esferas de poder.

 

Com isso chegamos, quase sem perceber, à tribunais de exceção e foros privilegiados que lesam direitos básicos e essenciais da grande maioria. Estou em momentos de imersão, de ensismesmamento(eita), e me vem  à cabeça o poema No caminho com Maiakóvski, do brasileiro(sim, do brasileiro) Eduardo Alves da Costa.

 

..."Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada."...

 

Ainda presa aos pensamentos, a memória remete a um fato em que a pureza e sinceridade de criança causou constrangimento. Mas criança que não conhece medo e nem permite que se arranque a voz da garganta é assim mesmo, adepta do sincericídio.

 

Minha avó tinha uma comadre de quem gostava muito e recebia toda a sua atenção e carinho. Mas não se enquadrava nos padrões de asseio e higiene que a Dona Emília considerava ideais.

 

A cada visita, a mesma recomendação: "não aceitem nada para comer ou beber. A comadre não lava as vasilhas direito, limpa o nariz com a mão e serve as coisas para a gente".

 

Então tá. Recado dado. Durante o passeio, a tal comadre insiste para que tomemos café com bolinho de chuva. A já então cabeça de gordo faz os olhos brilharem e a boca encher de água.

 

Mas o olhar da minha avó foi mais forte. Recusei e a mulher insistindo. Diante da inevitável pergunta sobre a recusa, resposta fulminante: quero não porque minha avó falou que a senhora é muito porca.

 

Fui levando "cocorotes" até em casa, sob ameaça de que ficaria reclusa a partir daquele momento. Talvez sirva de lição, tantos anos depois. Quem sabe tenha chegado a hora do sincerídio, de impedir que roubem a nossa luz com a coragem de simplesmente recusar, dizer veementes nãos à carências nocivas institucionalizadas, apesar dos cocorotes que a vida nos dará.


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