Sem poesia e futebol - Jornal Fato
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Sem poesia e futebol


Nestes últimos dias, vivenciamos perdas lastimáveis. Estivemos espreitando a morte de muito perto, mas, ela sempre está nos sondando. Perdemos esportistas, jornalistas, empresários, poeta e tantas gentes que sempre deixam lacunas. Buracos jamais preenchidos, dores sentenciadas que não se calarão.

 

Não haverá o grito que se emudeceu dos estádios, o sorriso que se perdeu entre tantas alegrias esquecidas, não se terá o poeta e seu trabalho afinco com as palavras, não se verá a notícia estampada por aqueles que se foram abruptamente. O estádio ecoa o silêncio e a literatura impregna-se de lástimas.

 

Ferreira Gullar com sua poesia engajada, de trabalho minucioso com as palavras, não se perpetuou sendo um imortal. Todavia, sua poética incendeia a vida daqueles que evocam a arte como continuação da vida, pois já dizia o mesmo poeta que a arte existe porque a vida em si mesma não basta. Na verdade, na vida, o tempo cabe tão pouco.

 

É uma luta diária que decidimos nos engajar, sabendo que, ao final, não restará um prêmio. Ou quem sabe, o tempo de vida constitui-se o maior dos troféus. Sofremos o embate todo o tempo, somos convocados a resistir à ausência do outro, a reverter dilemas em sensações mais amenas. Tentamos plantar o que dará uma boa colheita, porém, o fator surpresa faz parte do pacote.

 

A perda da vida ou o ganho de alguns anos que desfrutamos é o que, sem dúvida, deve valer a pena. A morte anula muitas coisas e nos preenche de tantas aprendizagens, de desapegos desnecessários e de importâncias extremamente necessárias. De que adianta uma vida de materialidades, se somos tão imateriais. De que vale as frivolidades se somos tão intensos.

 

A morte de tantas gentes, ao mesmo tempo, borra nosso coração e nossa felicidade. Tomamos em um gole só uma realidade dura com gosto de tantas miserabilidades, de fraquezas perenes. Onde só cabiam comemorações, vitórias, cabem, agora, desamparo e impotência, a certeza de que somos incertos, caminhando na corda bamba, nas frestas que se anunciam.

 

A poesia de Gullar e a arte do futebol embalam a felicidade das vidas alheias e nos aproximam de nós mesmos. E a morte também cadencia nossos corações nas mesmas batidas desritmadas e cambaleantes. A palavra enobrece o espírito e acalenta a nossa alma em sua eterna atemporalidade. O esporte evoca a alegria permanente, o êxtase, o inebriante.

 

Neste ínterim, a ausência presente no discurso da morte nos sonda, traz sua vestimenta descolorida, seus devaneios e impropérios, traz o que não desejamos e insistimos apartar. Sabemos das asperezas, das mortes desenhadas nas injustiças, na intolerância, na irresponsabilidade, na falta de fraternidade e altruísmo.

 

Confortamo-nos com a morte da honestidade, da verdade, das belezas e até da pobreza, o que não deveríamos, contudo, o encerramento da vida nos causa o maior dos medos, o caos que resistimos tanto em aceitar. O poeta extinguiu enquanto carne, mas insiste na vida de sua poesia, na resistência de sua palavra esbravejada e resiliente. A poesia que respinga e encharca a todos nós.

 

A alegria dos campos, do grito de campeão, alimenta o lado infante e precioso dos homens. Faze-nos acreditar que o amanhã terá outros gols, outras torcidas, outros dribles mágicos. Um time que dá ritmo ao que temos de mais simples e mais genial.

 

 Acordamos todas as manhãs com a certeza de nossa fragilidade, de nossos agouros, mas preferimos poetizar mais mil esperanças, sejam elas trazidas pela palavra bendita (maldita) de Gullar ou pela maestria nos dribles e gols de um domingo ensolarado. Todavia, estamos, neste tempo, enlutados, de alma baixa, de olhos ensimesmados, de expressão amarga.

 

No momento, a poesia não veio e a chuva custa nos deixar.

 

Simone Lacerda é professora.

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