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Rio abaixo


O isolamento, fruto da solidão voluntária, não a incomoda.

 

O melhor é não ter que dar explicações por atitude tão inesperada. Reflete e tem que admitir que em alguns momentos a decisão é inexplicável até para si.

 

Lembra-se, mais do que nunca, daquele pai aparentemente normal e equilibrado de Guimarães Rosa, que optara por viver seus últimos dias dentro de uma canoa
"rio abaixo, rio a fora, rio a dentro".

 

O isolamento não se deu em um convento, numa casa no meio do mato, numa ilha deserta nem na canoa do conto A Terceira Margem do Rio.

 

Foi na própria casa, o que tornara a opção pelo voto de silêncio ainda mais complicada. E nada foi de repente, como parecia aos ainda atônitos familiares e amigos.

 

Soma de insatisfações, expectativas não atendidas em relação a si e aos outros, e a certeza de que era impossível alcançar alguns objetivos nessa fase da vida foram fatores decisivos.

 

O isolamento era mesmo o melhor caminho. Seu quarto se tornara seu mundo, já que chegara à envelhecência sem vislumbrar além da mediocridade.

 

Se a canoa daquele pai roseano era suficiente, seu quarto, com relativo conforto, era o bastante. Mantinha hábitos de higiene satisfatórios e podia contemplar as árvores do pomar e ouvir o canto dos muitos pássaros. Não era de todo ruim como imaginavam.

 

Alimentava-se o suficiente para não definhar. Embora a vida tivesse perdido o sentido, não queria morrer, por mais contraditório que isso pudesse parecer. Jamais pensara em suicídio, por exemplo.

 

A família já consultara vários especialistas, mas nenhum diagnóstico tinha a menor importância, não tomava conhecimento de nenhum deles. Queria a paz que alcançara e isso bastava. Loucura ou doença espiritual, deixava aos outros a busca pela resposta.

 

O momento que vivia era suficiente. Nas raras reflexões não chegava a conclusão nenhuma, mas nada importava para quem passara a vida dando explicações enfadonhas.

 

Libertara-se disso. De vigiar o relógio noite adentro, com medo de perder a hora. Era daquelas que não confiava em despertadores. Pensando bem, após a boa fé típica dos adolescentes, não confiava em ninguém.

 

E se dá conta de que pior do que o isolamento a que se submetera era a falta de esperança. Na desesperança, realmente a solidão é o melhor caminho.

 

Solidão sem suporte virtual, diga-se de passagem. Sem celular nem acesso à internet. A vida lá fora, com suas notícias cada vez mais tristes, realmente não interessam.

 

Continua ouvindo ecos das conversas da família e de alguns mexeriqueiros, além de outros genuinamente preocupados com a sua sanidade mental.

 

Mas a fazê-la olhar além, apenas os pássaros e as árvores repletas de frutas, lembrando que lá fora a vida continua, e que tudo segue o curso. Realmente não faz a menor falta, deduz.

 

Não sabe se chora ou comemora. Enquanto decide, se encanta com um pássaro azul, que visita o pomar pela primeira vez. Definitivamente a vida tem seus encantos. Talvez valha a pena reconsiderar.

 


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