Recuperação - Jornal Fato
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Recuperação


(Capítulo 23)

 

Demorei a me recuperar do último vôo. Por isso não fiz contato, e me mata essa curiosidade se o que você sentiu foi falta ou alívio. Não é possível que a ausência do meu amor imenso não  tenha incomodado. Acredito que apenas seu orgulho tenha impedido de me procurar, saber notícias, sentir meu toque.

 

E no fundo é melhor que não me veja assim. Costurada, remendada, amarrada e imobilizada. Até careca, acredita? Precisaram tirar meu cabelo para tratar a pancada. Tudo em mim está novo ou reformado, menos meu coração. Ainda te quero com o mesmo afinco. Não há o que me convença que não é este o caminho. É sim. Você é o único destino para onde tenho que ir. Dizer que não é o mesmo de ter me deixado morrer na calçada. Não o mesmo: pior. Morrer seria um fim definitivo. A vida sem você é um morrer aos poucos, dolorosamente. Um exílio de mim mesmo.

 

Dizem que sou um milagre. Mas milagre, por definição, é um ato fora do comum, inexplicável. Ou um acontecimento formidável. O fato da minha vida continuar pode ser acaso, castigo, sorte ou azar. Mas milagre não é. Milagre é seu beijo. Milagre é quando você me abraça, me carrega no colo, tira minha roupa, toma banho comigo. Milagre é acordar no meio da noite e ficar te olhando dormir, deitar a cabeça no seu peito e ouvir seu coração, chorar de felicidade quando você diz que me ama. Eu arriscaria dizer até que o milagre se faz quando você, com raiva, me agride. Isso é cuidado e zelo. Isso é o milagre querendo dizer que o amor pode todas as coisas.

 

Aqui a rotina segue rumo insuportável, com uma ou outra exceção. Senti inveja de uma mulher que chegou quase morta, espancada pelo marido. Três dias depois ele apareceu com flores, ajoelhou, pediu perdão, disse que a amava. Foi levado pela polícia, e, segundo as enfermeiras, não foi a primeira vez. Por aqui todos sabem que assim que as coisas se ajeitarem, eles vão reatar. E eu digo o mesmo de nós. Conto nossas histórias e, muitas vezes, as pessoas choram.

 

Dia desses uma companheira de quarto disse que tinha pena de mim. Respondi que deveria ser o contrário, eu ter pena da vida morna dela. Mas ela insistiu, tentou me envenenar contra você, disse que eu precisava de alguém melhor. Bati nela com o suporte do soro até chegar ajuda, e não foi antes dela perder os sentidos. Foi uma confusão. Na verdade, um pouco de diversão nesse lugar triste. Acho que trocaram a pobre de hospital. Melhor assim. Eu ia acabar com ela e quebrar aquele narizinho em pé.

 

Em alguns dias vou embora. Vou cuidar de mim, esperar o cabelo crescer um pouco, comprar roupas novas, tomar um pouco de sol. Depois disso, caso com você, esteja onde estiver. Não adianta se esconder, eu te encontro. Mesmo que continuem meus rastros de destruição.


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