Rabiscos e histórias - Jornal Fato
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Rabiscos e histórias


Meu pai tem 81 anos. E um hábito que mantém, que me lembre, pelo menos nos últimos 40 anos. Tem um caderno em que anota as coisas que considera mais relevantes. Quando adquiriu determinado produto, quando se mudou, quem eram os vizinhos da época, o preço da casa que comprou, em quanto tempo pagou.  Quantas lajotas, sacos de cimento e vergalhão gastou na reforma ou construção, e outros detalhes que a gente só valoriza quando precisa de alguma informação.

 

As menos relevantes, como as trocas de gás, ele anota na parede mesmo quando não encontra um calendário pelo caminho, o que às vezes matava minha mãe de raiva. Hoje ela vive acamada e já não percebe os rabiscos em lugares relativamente discretos: atrás da porta, na parte superior da parede da área de serviço e em alguns outros lugares inimagináveis, mas possíveis. Todos com data, alguns com hora.

 

 Então não é incomum encontrar anotações nas duas casas, de Cachoeiro e do Alto Moitão do Sul, sítio aprazível, fresco, cercado de belos pássaros, água de nascente e muita qualidade de vida no município de Atílio Vivácqua, em que ele relembra cada detalhe dos últimos 21 anos e anotou muitos.

 

Fora as anotações, tem uma memória privilegiada. E essa semana estava falando de uma ponte que caiu na estrada de acesso a Brasília em dezembro de 1962. Relatou em detalhes a tragédia e o drama, inclusive o desespero de um vendedor ambulante que sinalizava, mas os três primeiros motoristas não entenderam. Dois carros de passeio e um ônibus caíram no rio. Carros e ônibus foram encontrados muitos quilômetros depois. Do ônibus, nenhum corpo foi resgatado.

 

Foi para Brasília em 1957 para trabalhar na construção e tem muitas histórias para contar que mostram a corrupção sistêmica. Muitos, não apenas os políticos, enriqueceram na construção da capital federal. Convivia com os principais expoentes políticos e empresariais, teve oportunidade de enriquecer, mas era bobo demais, como criticava um tio. Meu pai continua pobre, sobrevivendo de uma aposentadoria que já foi de dez salários, e hoje é de pouco mais que salário mínimo.

 

De minha parte, não faço apologia à pobreza, mas tenho muito orgulho das escolhas que meu pai fez, mesmo que isso imponha a ele uma vida modesta, e tenha nos proporcionado uma vida de muitos apertos, o que não impediu que ele e minha mãe priorizassem a nossa educação.

 

Então, quando olho para trás, vejo mais que anotações nas paredes, pedras e nos cadernos que o tempo se encarregará de consumir. Vejo marcas de um caráter e moral ilibados que não se apagará da memória de nenhum dos filhos. Marcas da teimosia que o tempo fortaleceu, mas também da resiliência e generosidade.

 

Faço uma autoanálise e percebo que não escrevo nas pedras e paredes. Os fatos mais relevantes, dolorosos ou não, tristes ou alegres, estão profundamente grafados na alma. Esses, só a morte é capaz de apagar.

 


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