Pé Direito - Jornal Fato
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Pé Direito


Todos os dias quando acordo a minha primeira decisão é encostar o pé direito no chão antes do esquerdo. Mas hoje que acordei mais cedo, hoje que despertei de um salto com o barulho estridente desse celular que é telefone, computador, caderno, agenda, calendário, editor de textos, câmera e, de quebra, um despertador onde nunca consigo inserir um som suave, encostei os dois ao mesmo tempo. Direito e esquerdo. Sorte e azar. Tive a sensação que o azar prevaleceria já no banho, na água gelada do chuveiro que se negou a funcionar.

 

Queimo a língua com o café que é morno nos dias de pé direito. Encontro um antitabagista no cigarrinho matinal antes de chegar ao ponto. O ônibus está mais lotado que de costume, quebra no caminho e chego atrasada. A energia dos dois pés invade meu dia em tudo: no mau humor do chefe, no almoço solitário, no dinheiro que desaparece da bolsa, na consulta desmarcada e na unha que quebra.

 

Se eu ainda soubesse rezar, pediria para que a maldição fosse quebrada. Mas acho uma grande sacanagem que, depois de tanto tempo sem acreditar, eu reze por ter sido descuidada. Deve ter sido praga de alguma sogra esse lance, ou de uma prima invejosa, ou da mulher do meu vizinho de frente que pediu para eu parar de andar pela casa só de calcinha, e eu respondi que a casa era minha, e as regras também. Viva chegar em casa e arrancar a roupa que te oprimiu um dia inteiro!  Alguém que não gosta de mim fez um vudu de pés costurados e minha esperança é que um raio caia no exato lugar dos pontos que devem ter sido muito bem apertados. Ou que uma lei declare os vudus inaptos.

 

Em casa, quase abatida e ainda não desencantada da vida, deito exausta e tiro a roupa toda. Toda mesmo, para provocar a tal vizinha. Ela que feche as janelas ou fure os olhos do marido. Quando a campainha toca eu, atenta, encosto o pé direito primeiro no chão. Minha chance de recomeçar.

 

Você me segura firme, olha fundo como quem procura minha aura e diz que me ama, que nunca mais vai embora, que voltou e que vai ficar. Na televisão que esqueci ligada escuto a moça do tempo dizer que o dia amanhã vai ser lindo. Acredito nela. Mas, por via das dúvidas, juro manter o pé esquerdo para cima até que o direito esteja completamente firme na superfície onde me apoio.


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