Ouvir silêncios - Jornal Fato
Colunistas

Ouvir silêncios


Ando apavorada com a normalidade aparente. Daquela que expõe sorrisos e gentilezas tímidas, que sugerem uma vida relativamente feliz, senão completamente cor de rosa. Mas escondem dores e feridas profundas, que o olhar desatento e apressado não é capaz de perceber.

 

A indiferença, assustadoramente, só é quebrada quando o pior já aconteceu. Nota-se o caos até então não identificado quando não há mais o que fazer. Tarde demais. Sem volta nem segunda chance. Só o arrependimento tardio e a culpa, quase imperdoável, pela visão embaçada que nos impediu de perceber o pedido de socorro e o grito aprisionado na garganta.

 

O que a sensibilidade não foi capaz de identificar surge após o ato consumado. Fatos e suas versões são expostos, às vezes impiedosamente, e só então sabemos que a vida não era cor de rosa, que não havia felicidade plena e êxtase abundante, como muitas vezes sugerem as aparências, mas uma angústia e tristeza cuidadosamente disfarçadas em gestos polidos e olhar fugidio.

 

Sabe-se então, com todas as letras até então escondidas numa rotina dissimulada e triste, que havia muitos problemas, quase intransponíveis, que impediam a vida em sua plenitude. Que muitas lágrimas caiam pelo caminho, cuidadosamente derramadas na intimidade do quarto sempre escuro, num clima de desolação total.

 

Não é normal para mim também a absoluta felicidade exposta nas redes sociais, como se não houvesse problemas e aflições a serem administradas. Essa necessidade exagerada de fazer um diário virtual público do que a mim parece exclusivo à esfera privada é sintomático. E preocupante. Viver de aparências para mim nunca foi o melhor caminho. Necessidade de autoafirmação depois da infância? Alguma coisa deve estar muito errada.

 

Cada um sabe de si, e o que pode parecer crítica desproposital está ligada à preocupação com a normalidade aparente que tem ceifado vidas ainda jovens. Mais que nunca, é preciso se importar e perceber as entrelinhas. Repetitivo, eu sei. Já escrevi sobre isso. Mas as coisas pioram a cada dia. E é preciso reescrever, para que haja amanhã. Para que soe o sinal de alerta diante do perigo iminente cuidadosamente disfarçado de felicidade extrema, ou gentileza tímida.

 

Não sei se a alguém parece normal os "especialistas" que se manifestam, cheios de autoridade e ódio, nas mídias digitais, principalmente nos grupos de whattsapp. Aqueles que sem dó nem piedade, condenam ou absolvem, ao bel prazer, quem ouse discordar de posicionamentos pessoais e políticos. Mas estão indiferentes à dor do outro. O papel de juízes e paladinos da moralidade alheia é o único que aceitam.

 

Mas cada um sabe de si e da vida que planejou. Que nesse futuro haja espaço para a generosidade. Nem tudo está perdido. Ainda há esperança e tempo de exercitar o amor. Treinar o olhar para os dramas pessoais e coletivos cotidianos. E isso cabe a cada um de nós. Estejamos atentos. Ou corremos o risco de nos acostumar a chorar sobre o sangue derramado.

 


Comentários