O machismo nosso de cada dia - Jornal Fato
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O machismo nosso de cada dia


Era uma vez uma menina nascida em uma família de classe média alta, filha de empreiteiro, que tinha em casa três empregadas e estudou em escola particular. Essa menina, muito cedo, abandonou o cômodo conforto de uma vida de luxo para lutar por uma causa que não era dela apenas, mas de todos. Lutou contra a ditadura, foi presa e torturada de várias formas, dentre elas a palmatória e os choques elétricos. Estudou economia, galgou vários postos e chegou a presidência da república. Dispensou os grandes acordos e sofreu um golpe. Logo depois um homem, de grandes acordos e graves crimes comprovados, passou pelo mesmo processo. Foi absolvido. Afinal, acima de tudo, ele é um homem.

 

Era uma vez uma musicista de vinte e sete anos. Ela vai ao motel com seu namorado, um homem pelo qual ela era muito apaixonada. Nesse motel um outro amigo apareceu e os dois tiveram relação sexual com ela. A quantidade de homens com os quais ela se relaciona é problema dela, mas o detalhe é que, apesar de o namorado dela ter um martelo na mochila, a polícia trata o sexo como consensual. Para sexo consensual não é necessário o uso de uma arma. O nome disso é estupro. Mas ela era uma mulher em um motel com o namorado que ela amava no século XXI, e, como se não bastasse a forma desumana com que a polícia trata o caso, a imprensa pega carona. Depois de morta a marteladas por dois homens, que queimaram seu corpo com a ajuda de um terceiro, seus bens foram roubados e divididos. Tratam como latrocínio. E só.

 

Era uma vez uma jovem de quinze anos que foi estuprada em uma estação de trem. Ao sair para pedir socorro, um homem oferece ajuda e a estupra pela segunda vez. E era uma vez um jovem que empurrou a namorada grávida de um carro em movimento na zona sul do Rio de Janeiro. Era uma vez um menino de oito anos que teve o fígado dilacerado pelo pai após tomar sucessivas surras porque ele gostava de lavar louça, e precisava aprender a "ser homem". Era uma vez uma menina que foi vítima de estupro coletivo. Depois outra. E outra. E outra. E outra.

 

O "era uma vez" tinha a intenção de tornar essas histórias apenas estórias. Mas é a realidade de todos os dias, de todas as horas. Enquanto você fuma um cigarro ou prende o cabelo, uma mulher está sofrendo violência de alguma forma. Física, moral, financeira ou psicológica. Quando um ator global se achou no direito de tocar em uma camareira, muitos acharam que ela deveria se sentir lisonjeada. Por que? Por que ainda ganhamos menos? Por que a culpa é sempre nossa? Por que tantas piadas grotescas?

 

Enquanto acharem que ser feminista é apenas uma forma de ser radical, o abuso não vai parar. Ser feminista é não ser machista. É querer igualdade. É o anseio pela liberdade de poder ser o que é.

 

O feminismo nunca matou ninguém. O machismo abusa, violenta, tripudia e mata todos dias.


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