O Atraso da Humanidade - Jornal Fato
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O Atraso da Humanidade


O jovem tinha lá seus 18 anos e queria porque queria conhecer o primo mais velho, da parte de sua mãe. E o primo mais velho, filho de D. Nenem, estaria, como sempre, no verão, no Bar do Nagib, em Marataízes. O jovem fora criado por parentes, em Cachoeiro; tinha perdido os pais e era muito bem tratado pelos tios, que o acolheram em sua casa. Já o primo mais velho, excelente escritor, diziam que era bastante turrão; alguns achavam que ele apenas fazia gênero turrão, já que, calado sim, não gostava de ficar puxando conversas. Gostava mesmo era de ouvir conversa dos outros, ao mesmo tempo em que ia observando fatos e coisas aleatoriamente. Era da junção de fatos e coisas, logicamente compatíveis entre si - ou não -, que o primo turrão tirava suas futuras histórias que se transformavam em crônicas, as melhores que se via escritas por aqui e lá fora também - estamos em fins da década de 1940.

 

Conhecer o cidadão turrão, parente da parte da mãe, até que não era difícil - ele com frequência vinha a Marataízes para pescar uns peixes do mar, junto com pescadores seus amigos. Vinha também para ver gente da família e prosear com outros amigos, amigos de vida inteira, amizades que fizera quando criança à beira do Itapemirim e do Córrego do Amarelo, sem falar na escola de D. Palmyra. Com eles se correspondia sempre; corresponderam-se até que o tempo de vida na terra os ia transferindo ao além.

 

O jovem de 18 anos sabia das dificuldades até de aproximação do primo turrão - isso lhe diziam - mas tal não haveria de ser empecilho, afinal, não é todo o dia que se faz amizade ou, ao menos, se troca ideia com alguém famoso lá fora, até no mundo estrangeiro... ainda mais parente.

 

Tanto insistiu o jovem que ele foi até ao turrão e, logo que chegou no Bar do Nagib, o jovem já sentiu que o parente era turrão mesmo. Todo mundo conversando conversa de todas as qualidades - boas qualidades - e ele, o turrão, fazendo cara de zangado, ouvindo conversas que lhe eram tão familiares. Que ele gostava das histórias, isso é certo, tanto que não é difícil, entre suas milhares de crônicas em jornais e revistas, eternizadas em livros, ler muitas delas em que ele recorda bons momentos que viveu e anotou por aqui.

 

Chegando até ao parente turrão, o jovem parente foi logo lhe perguntando algo que engendrara - algo que não fosse fácil e que também não fosse difícil, algo que o turrão pudesse responder, respeitando o jovem de 18 anos e sua inteligência:

 

- "Seo" Rubem, o que o senhor acha da humanidade, hoje?

 

A resposta de Rubem Braga veio fulminante:

 

- A humanidade, hoje, está atrasada umas três doses de uísque.

 

E nada mais Rubem disse e nada mais lhe foi perguntado pelo primo Renato Coelho.

 

Ser coerente é uma doença

 

Se há fato estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também em nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente.

 

Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando não só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o dia de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo Estádio de evolução tal desgraça seria natural.

 

Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais. Os que não reparam para as coisas quase que as vêem apenas para não esbarrar com elas; esses são sempre da mesma opinião, são os íntegros e os coerentes.

 

(O texto não é meu, é de Fernando Pessoa, um dos maiores poetas da língua portuguesa. Alguém duvida? (Para não perder a viagem, aqui vai frase minha, recente, janeiro/2018. Será que é minha mesmo? - "IDIOTA, no mínimo, é aquele que acha que SEMPRE tem RAZÃO").

 

Em 1966, no Vestibular da FDCI

 

Em 1966 eu morava em Castelo. Vim a Cachoeiro para o vestibular da FDCI. O primeiro vestibular da Faculdade de Direito. Com 18 anos incompletos, submetera-me às provas escritas e era chegada a hora da prova oral.

 

Um dos professores da banca de História era o Dr. Edmar Mendes Baião, e eu, bem mais do que hoje, era alguém que tinha grande dificuldade em me expressar oralmente. Não sabia falar, não sabia decorar. Além do mais, havia me preparado para o vestibular de Agronomia, que por falta de recursos de meu pai, não pude seguir; dera pouca atenção ao estudo de História.

 

Quando o Dr. Edmar me pediu para relacionar as causas da Revolução Francesa, senti um frio na barriga. Pronto, disse a meus botões, me ferrei. Parei para respirar, recuperei a calma e me veio a ideia. Quando eu estudava as revoluções, descobri que a Independência Americana se dera em 04 de julho de 1776, e a Revolução Francesa em 14 de julho de 1789. Como, para mim, a Independência Americana se dera já na Idade Contemporânea (o que não era verdade) e como a Revolução Francesa é o divisor de águas da Idade Moderna e da Idade Contemporânea (portanto, era uma revolução do fim da Idade Moderna, anterior), achei o fato curioso e não mais me esqueci dessa precedência da Independência Americana.

 

E como não tinha nada para dizer, já que meus 18 anos não me permitiram ir além dos fatos em si, sem preocupação com causas deles, chutei a bomba: - "Uma das causas da Revolução Francesa foi a Revolução Americana".

 

O Dr. Edmar Baião assustou-se e disse: - "Como assim? A Revolução Americana é anterior à Revolução Francesa?" - "Claro", respondi, "a Independência Americana foi em 1776 e a Revolução Francesa foi em 1789, treze anos depois". A perplexidade dele, que fora a minha antiga perplexidade, me salvou; eu acabara de passar na prova oral, já que o estimado professor não se animou a novas perguntas, certamente acreditando piamente que estava diante de alguém muito estudioso na matéria.

 

Pois bem, essa foi consideração que sempre me chamou a atenção na História Universal. Uma independência tão próxima de nós (a americana) era mais antiga do que uma Revolução que parece tão distante.

 

A Revolução Francesa consolidou-se há um pouco mais de dois séculos. O que são 229 anos na História? Nada! Menos que um piscar de olhos.

 

(Texto escrito inicialmente em julho de 2009, nos 220 anos da Revolução Francesa. Foi lido no mesmo ano, em comemoração àquela Revolução, na Loja Maçônica Fraternidade e Luz - aqui, o texto foi ligeiramente adaptado para os dias atuais).


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