O Ano Começa - Jornal Fato
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O Ano Começa


(Capítulo 22)

Quando o ano começou eu ainda estava aqui, com cara, cheiro e sofrimento de ano velho. Mas Marta, sempre a Marta, chegou sem ser convidada para a limpeza. Não tomou susto com o meu caos - ela já está acostumada com eles. No fundo, acho que ela pensa que sou louca. E isso nem tem importância, porque penso o mesmo dela. Ela vive sorrindo, mesmo trabalhando muito, mesmo ganhando pouco, mesmo cuidando de oito filhos, mesmo morando mal, mesmo tendo sido abandonada pelo marido, mesmo com os claros sinais de cansaço. Ela cantarola enquanto abre janelas, recolhe as garrafas de vinho e os vidros vazios de remédio e esfrega o chão para tirar as manchas. E canta alto competindo com o barulho do chuveiro quente, onde ela me obriga entrar, com a firmeza e o carinho de uma mãe.

Quando vou para a varanda, fico quase agradecida por não ter morrido. Mas acho que ano que vem vou juntar dinheiro para viajar para algum país onde o calendário seja diferente do nosso. Passar o natal entre os judeus e o ano novo na China, quietinha, sem fogos, festas, presentes consumo. Meus pensamentos são interrompidos pela campainha. Tomei um susto, porque nem me lembrava mais do som que ela emitia.

Flores! Vibrantes, coloridas e com cheirinho de natureza viva. Eu, morta por dentro e quase morta por fora, recebo achando que eram para Marta. Mas não. Eram para mim. Por uma fração de segundos acho que é sua letra. Como deve saber, não era. Eram flores de um homem que conheci em um desses aplicativos de solteiros. De férias, ele está aqui na cidade e resolveu me conhecer pessoalmente. Passei o resto da manhã feito estátua no sofá, pensando se ligaria ou não para o número que estava no cartão. Liguei. Marcamos.

Ele abriu a porta do carro, trouxe mais flores e me levou para jantar. Na volta nem deu tempo de subir. Nos pegamos no carro, e aqueles braços fortes me agarrando e ele sussurrando o quanto eu era maravilhosa me enlouqueceram. Rolou ali, com o carro na rua. Depois de novo, quando ofereci a ele minha segunda vaga na garagem. E do elevador, saímos quase sem roupa. Foi uma noite perfeita.

De manhã, pedi que ele saísse. Prometi ligar, mas não sei se consigo. Acho até que troquei o nome dele pelo seu, quando já estava bem cansada. Se o fiz, ele não ouviu ou não quis ouvir. De qualquer forma, estávamos ocupados demais para esse detalhe que é você na minha vida.

Rasguei o cartão com o número dele e digito o seu, apagado do celular mas (in)devidamente registrado na memória. Você não atende embora eu insista. Deixo recados, mando mensagens, imploro, grito e, esgotada, jogo o telefone pela janela. Observo a queda e puxo uma cadeira. Quero para mim, naquela hora, o mesmo destino do celular. Voar até que não exista mais nada.


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