Não me cabe - Jornal Fato
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Não me cabe


 

Vivemos em mundo plural que requer de todos nós uma uniformidade inexistente. Há uma supervalorização dos padrões de estética (IMC), cor de cabelo, textura, tipos de roupa; determinam-se a idade para ser feliz e o que se pode e não pode fazer em cada idade. Tentam, a todo tempo, nos formatar como se pudéssemos caber em vasilhames ideológicos, sociais e identitários. Triste.

Ao abrir as redes sociais, vemos imagens lineares e repetidas de pessoas que querem se destacar, tornar-se "referência". E, aí, questiono: De quê? Da roupa que anunciam, dos corpos que cultuam e esculpem à base de dietas inviáveis? Ou esquecem que muitos, ainda, não conseguem ter uma alimentação digna e adequada para se ter qualidade de vida? Incompreensível, não? Que mundo é esse que sofre as piores desgraças seja por intolerância ou por descaso, mas idolatra o corpo que dizem ser impecável de uma nova "celebridade" (ou seja lá o que for)?

Vi, pelas mídias, nestes últimos dias, uma discussão que, a princípio para mim, era irreal: uma pessoa na praia, acho que namorando um dito "famoso", foi fotografada de costas, mostrando sua região dos glúteos. A partir daí, houve uma calorosa discussão, advinda das redes sociais e também de uma parte da imprensa, das proporções dessa região. Ficou-se discutindo (triste demais isso) a garota ter ou não bumbum. Chegamos, realmente, a um estado de letargia midiática; uma inapetência para produzir notícias mais substanciais. E será disso que alguns leitores irão se alimentar!

Realmente, o mundo deve estar com todos os problemas resolvidos e não se produz nada de profundidade intelectual. E se você não atinge os padrões determinados, virará motivo de chacota e tema de reportagem, haja vista isso ser muito relevante para se estampar jornais, revistas e sites. Lembro, junto a este exemplo, situações vividas pelas atrizes Vera Fischer e Betty Faria, que foram chicoteadas na imprensa. Primeiro, por que percorreu um aeroporto e até tirou foto com fã sem maquiagem, mostrando os sinais deixados pelo tempo, e a segunda por desfilar de biquíni, na praia, depois dos seus setenta anos, já que seu corpo não é igual às meninas de vinte. 

Ir contra a maré dos padrões faz-nos ser julgados e inquiridos. Envelhecer, nesta sociedade pós-moderna, é um desafio. E saber envelhecer, com muita sabedoria e orgulho das marcas deixadas, é assumir o maior, e, para mim, o melhor dos riscos. Caso também seu corpo não esteja encaixado na ideia besta - e absurda - que ser magro ou super e mega sarado, como o meu não é (graças a Deus, muito feliz com minha silhueta), será motivo de debates e críticas ferrenhas. 

 Estamos subsistindo em discursos vazios; que se preocupam mais com a "artista" que apareceu suada ao sair da academia à importância de criarmos um público-leitor de profundidade para que, desta forma, tenhamos capacidades de questionar, efetivamente, a política, a sociedade, a melhoria da nossa saúde e educação. E padronizar as pessoas e suas formas de pensar, verdadeiramente, aparelha o discurso ideológico e fortalece, em níveis altíssimos, a alienação.

Estou enfadada de abrir jornais e revistas e ver uma grande preocupação com o que se usará na próxima estação ou os últimos avanços da cirurgia estética em detrimento de notícias que abordem temas pertinentes à nossa melhoria de vida, à importância do pensar e aos nossos ideais políticos, por exemplo. Mas, estamos adormecidos, com anestesia forte (e terão efeitos colaterais).

Estamos obedientes ao caminho estendido até nós, sem indagar novas passagens ou construção de vias. Reconhecemos que os tempos são dados individualmente, como nosso corpo e pensamentos, porém, às vezes, somos dados às tolices, aos preceitos inventados para nós, nos quais não cabemos. Queremos retirar nossa história para sermos iguais, para sermos estabelecidos pela visão do outro; isso não nos cabe. As marcas, os traçados, a vivência e a beleza são construídas nas particularidades.  

 

Simone Lacerda é professora.

cheirosensaiosepoesia.blogspot.com.br


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