Milagres cotidianos - Jornal Fato
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Milagres cotidianos


Vez ou outra me pego contemplando as pequenas coisas. São situações minúsculas marginalizadas pela aridez diária. Consideramos milagres, fenômenos aquilo que saltam aos nossos olhos, mas acredito no milagre que perpassa nossos olhares e nem nos damos conta.

Somos frágeis ou altivos demais para significar pétalas ou folhas caídas, para dar sentidos inaugurais àquele sorriso sem graça, àquele toque sem querer, mas que traz carinho, àquela hora de conversas rememoráveis que nos aproximam de um passado, recente ou remoto, gostoso de costurar.

Ao retornar à poética de Manoel de Barros, até por conta de sua morte e as postagens de seus textos nas redes sociais e sites, dei-me conta, ou a perdi, de como é necessário nos determos nas coisas insignificantes, nos pedaços indeterminados, nos gestos abandonados e nas palavras inconstantes que deixamos esvaziar.

Sempre gostei de viajar nas palavras e enveredar pelos significados não determinados, sempre preferi a viagem das palavras a qualquer outra viagem, rememorando Manoel de Barros. E este visitou-as com a mais rica simplicidade, reinaugurando quintais ao invés de cidades, gente ao invés de sociedades, mundos singelos ao invés de prédios, carros e trânsitos. "Prezo insetos mais que aviões" (O Apanhador de Desperdícios) é um verso que me visita sempre. Li este poema há muitos anos e, ora ou outra, me sobressalta, embala meus pensamentos quanto à valorização das (des) importâncias.

Determinamos ser felizes nas grandes situações, nos planos mirabolantes, porém, aprendi que meu bálsamo está na inutilidade, nas coisas simples, nos vazios não preenchidos pelas ambições mesquinhas, pelas ganâncias assassinas, pelos desejos comprados nos shoppings e à custa de muitos cortes.

Para Manoel de Barros, "poderoso" é aquele que descobre as insignificâncias (Tratado geral das grandezas do ínfimo). E disso quero me abastar, encher minhas economias. E, assim, vencer o cansaço das coisas difíceis. Universos, de tão grandes e finos, perecem cedo demais. Quero ter o privilégio de ser abraçada pelo Sol, rechear meu corpo no vento e ter verdades para agradecer.

Desejo para você, meu nobre leitor, o menor dos espaços para que ali você veja a grandiosidade da vida. Nada de se entregar demais às tarefas que te distanciam das belezas nas miudezas. Seja agradecido pelo irrelevante diário, daquele não noticiado pelos jornais, pelas revistas e televisão.

Espero que aprendamos nos desprender dos nós e gaiolas que nos sufocam, gotejam nosso ar e nossas emoções. Sejamos mais afetuosos nas palavras, com os humanos e menos precisos e consumistas de sentimentos que nos danificam, nos dão a sensação de que nunca conseguimos ter o "dever cumprido".

Quero ter a intimidade com o indivisível, o imponderável, com os abraços não ditos, o beijo molhado e doce, a frase bendita dita. Quero ter a graciosidade do menino que solta pipa e se sente o mais feliz das gentes, dos experientes contando casos de uma juventude cheia de peripécias. Desejo a mansidão das singelezas e o turbilhão dos pequenos insetos e a habilidade de seus pousos. Não quero acordar atrasada de um tempo que corre à frente dos relógios, mas quero o desconstruído, o desenfreado e o devagarzinho. Mais que tudo, desejo ter que agradecer todos os dias pelas pequenas coisas que me aproximam mais das pessoas e de mim mesmo.


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