Memória seletiva - Jornal Fato
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Memória seletiva


Uma senhora que sofrera maus tratos de um familiar chegou até nós, na Vila Aconchego, através de mandado judicial. Admira-me ouvi-la falar com carinho e saudade do tal parente agressor. Imagino que, ou a memória dela é seletiva e apaga o mal do qual foi vítima, ou o psiquismo, como defesa, elimina o sofrimento. Já observara esse fato com outras pessoas em situações idênticas.

 

Tenho boa memória, lembro-me de nomes e fisionomias, só não guardo datas. Mas os números dos meus documentos e de senhas eu memorizo todos - talvez por falta de paciência com quem fica na minha frente nas filas catando documentos e atrasando os atendimentos! E admiro-me da memória dos meus netos, eles citam fatos que acorreram entre nós, quando tinham poucos anos de vida e que eu nem lembro. Li em algum livro que recordamos os fatos passados após adquirirmos a capacidade de falar. Minhas lembranças da infância são raras - a do meu pai presenteando-me com um filhote de pássaro ou alguma fruta saborosa; da alegria em encontrar uma colmeia no toco de madeira e da delícia do mel; da minha tentativa de negociar com Papai Noel para receber um presente de Natal, o que não era tradição em minha família, e a dor da decepção; do colo de Zé Patão (imaginem o motivo do apelido), que tomava conta de mim e não no da minha mãe. E a lembrança mais triste - a ter sido vista enquanto fazia xixi abrigada por uma árvore e a dor causada pelo deboche dos colegas de classe. O que ficou dolorido na memória já foi devidamente tratado em anos de terapia e resolvidos, assim o espero...

 

Atualmente o que desejo memorizar, basta ler algumas vezes com atenção - guardo melhor o que leio do que o que ouço. Pego-me, de vez em quando, saindo de palestras ou da igreja sem ter prestado atenção no conteúdo exposto. Tenho a maior facilidade de voar na imaginação! O livros guardados na memória são os que mais me tocam sensivelmente, mas por favor, não me perguntem os nomes dos autores, reconheço o ato falho e não compreendo as razões. Após 50 anos sem pegar num acordeão, quando abri o instrumento e as partituras me vi tocando como se nunca tivesse interrompido. A memória seletiva é surpreendente! Hoje cuido da memória como do físico, tento não dissocia-los e mantê-los em pleno funcionamento. 

 

 


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